sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Doces sufis, militantes de pedra (Parte 3)

Syed Saleem Shahzad

22/1/2011, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online
Parte 1: Um sombrio campo de batalha”, 20/1/2011, 
Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online 
Parte 2: Os Talibãs recolhem-se para acumular forças”, 21/1/2011, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online
 
O sucesso da militância conduzida pela al-Qaeda no sul da Ásia explica-se por dois fatores. A al-Qaeda delegou as operações de resistência aos Ibnul Balad (filhos da terra), limitou suas conexões a um seleto círculo de comando e passou para aquele grupo seu quadro de conceitos ideológicos e estratégicos. A al-Qaeda em momento algum tentou aproximar-se dos movimentos de base da guerrilha local.

Em segundo lugar, a al-Qaeda modificou suas estruturas para adaptá-las a costumes e tradições locais.

Essa mesma estratégia a al-Qaeda está usando no norte do Afeganistão e na Ásia Central, território do islamismo sufi.

Em interpretação filosófica clássica, o islamismo sufi ergue os olhos para a eternidade espiritual, enquanto o islamismo salafi jamais tira os olhos dos aspectos temporais da realidade. Sufismo e salafismo só muito raramente se misturaram na história muçulmana, mas sempre que alguma fusão aconteceu era tempo de resistência a invasão estrangeira, como na Líbia, onde Omar Mukhtar liderou a resistência contra o domínio italiano no país, no início dos anos 1900s.

Hassan al-Banna
Outro exemplo é a Fraternidade Muçulmana. O fundador, Hasan al-Banna, era da escola sufi de Hasafia, mas declarou que a Fraternidade seria movimento simultaneamente sufi e salafi.

É fenômeno tão raro que nenhum ator estrangeiro, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que desconhece completamente as vicissitudes do pensamento muçulmano, jamais considerou ou consideraria a possibilidade de esses conjuntos de ideias aparentemente opostas e contraditórias fundirem-se.

A OTAN encheu o norte do Afeganistão de regimentos de tropas não combatentes, na certeza de que os combates “reais” aconteceriam nas regiões em que predominam os pashtuns, no sul. Em nenhuma das revisões da estratégia de guerra feitas pelo governo Obama dá-se ênfase à situação no norte do Afeganistão; todos os principais planos estão centrados nas teimosas províncias de Helmand e outras áreas do sul.

Para a OTAN, o Talibã seria movimento dos pashtuns influenciado pela al-Qaeda salafi; e a OTAN avalia que haveria baixa probabilidade de o Talibã crescer no norte do Afeganistão, onde predominam as etnias hazara, tadjique e uzbeque; que é mais próximo dos xiitas e dos sufis; e que teria tendências seculares. A OTAN entendeu, acertadamente, que se o Talibã controlou a região no final dos anos 1990s (quando estavam no governo em Cabul), aconteceu por efeito do maior poderio militar e com a ajuda da minoria pashtun local.
Mas houve outros motivos que explicam, simultaneamente, a rota consistente que os Talibãs abriram para o norte.

Depois que os EUA invadiram o Afeganistão no final de 2001, os Talibãs foram facilmente derrotados no norte do Afeganistão – foram mortos, presos, ou fugiram para o sul do Afeganistão ou para as áreas tribais da região da fronteira com o Paquistão. Não encontraram um único santuário ou abrigo no norte, que pudesse dar-lhes alguma chance de permanecer ou de, adiante, retornar para lá.

Apareceram várias propostas, todas baseadas no pressuposto de que os Talibãs nunca prosperariam no norte. Dentre elas, a ideia de “balkanizar” o Afeganistão, como sugeriram alguns think-tanks norte-americanos; e a divisão do Afeganistão em dois territórios “étnicos”, um ao norte, outro ao sul. Houve também a proposta, discutida no final dos anos 2000s, de permitir que os Talibãs governassem o sul. E ainda se discute a ideia de que, depois de 2014, o exército dos EUA permaneça estacionado no norte, mantido afastado, portanto, de operações de combate.

Depois de derrotados, os Talibãs não tentaram qualquer tipo de retorno ao norte – sobretudo porque a maioria de seus líderes e comandantes do norte estava morta, ou presa, ou foragida no Paquistão. E os Talibãs não tinham seguidores nos movimentos de base, que os pudessem proteger.

Madrassa sunita (Escola)
Mesmo assim, alguns núcleos persistiram, sob a forma de mesquitas e madrassas (escolas religiosas), construídas ou reforçadas durante os anos de governo dos Talibãs, de 1996 a 2001. Ao mesmo tempo, havia uzbeques e tadjiques nas áreas tribais do Afeganistão, no Waziristão Sul e no Waziristão Norte do Paquistão. E havia, importante, uma população pashtun que vivia extremamente isolada no norte.

Na década depois da queda do governo dos Talibãs, cresceu massivamente o ressentimento contra as forças estrangeiras de ocupação, para as quais os pashtuns seriam “aliados dos terroristas”, e os senhores-da-guerra, do norte, seriam “bons amigos”, empenhados também na “guerra ao terror”.

As mesquitas e as madrassas inflaram a insatisfação geral contra as forças estrangeiras, o que ajudou os líderes Talibãs do norte a se reconectar com a população e permitiu-lhes começar a operar em 2007-08.

al Qaeda
A al-Qaeda, enquanto isso, cultivou relações com uzbeques e tadjiques nas áreas tribais, preparando-se para dar uso produtivo às sementes de resistência que os Talibãs continuavam a regar no norte (os Talibãs trabalhavam para divulgar as ideias da resistência entre todos os grupos étnicos no norte, ao mesmo tempo em que começavam a surgir grupos militantes ativos nas repúblicas vizinhas, da Ásia Central).

Doces sufis, militantes de pedra
Qari Mustafa tem todos os traços característicos do militante Talibã; cabelos e barbas longos e crespos, de compleição forte, musculoso. Mas não se vê, por trás das lentes dos óculos, o olhar do militante, focado, frio; olhos de águia, sempre tentando adivinhar de onde virá o perigo, ou à procura do perigo. Os olhos de Mustafa são estranhamente calmos – o que adiante se explicará.

Visitei Mustafa, 26, numa casa de tijolos de barro e pedras em que ele passava o inverno, no interior da província de Baghlan, 200 quilômetros ao norte de Kabul, quando, por causa do frio e da neve, a guerra estava praticamente suspensa. O comandante Talibã estava em retiro numa khankha, local ao qual os sufis recolhem-se para a maraqaba – prática de contemplação e outros rituais religiosos.

“O senhor é sufi?” – perguntei, vendo pelas paredes da sala fotos de Meca e Medina, os dois pontos mais sagrados para os muçulmanos, localizados hoje na Arábia Saudita. Numa das paredes, via-se um coração desenhado, materialização do conceito de tazkia (pureza de coração).

"Sim, sou sufi” – Mustafa respondeu.

Talibã com munição anti-tanque
Essa resposta me fez pensar. A Ásia Central foi lar tradicional do sufismo, sobretudo dos sufis Naqashbandi, que várias vezes se rebelaram contra a ocupação das repúblicas, ainda ao tempo da URSS. Esses círculos sufis foram a base de vários movimentos islâmicos clandestinos no Uzbequistão e no Tadjiquistão, que fizeram dura oposição à ocupação.

Eu disse: “Deve ser sufi Naqashbandi”.

“Sou” – Mustafa respondeu. Disse que seu guia espiritual era Pir Bahaijan Agha, de Ghazni, no Afeganistão. E continuou: – “Não sou o único. Todos os principais comandantes de Baghlan e Kunduz são formados ou na escola Naqashbandi de pensamento, ou na escola Qardri”.

Nascido na vila de Qarah Daqa em Baghlan, Mustafa recebeu educação religiosa no distrito Doshi da província e, depois, estudou num seminário em Haripur, no Paquistão. Era muito jovem para ter militado ao tempo do governo dos Talibãs, e não participou da luta de resistência contra os EUA, na invasão de 2001.

“Tinha completado meus estudos e estava trabalhando como mestre de orações e professor, na mesquita da minha cidade. Foi quando velhos amigos e alguns professores da madrassa convenceram-me de que não podíamos continuar sentados na mesquita. Era hora de lutar contra a ocupação estrangeira. Deixei a mesquita e juntei-me aos Talibãs”.

Talibãs nas montanhas do Afeganistão
Segundo sua narrativa, a jornada de Mustafa com os Talibãs começou em 2005. Era soldado comum e combateu em ataques esporádicos no norte. Em 2007, os Talibãs já haviam atraído grande número de combatentes, e podiam já constituir grupos em quantidade suficiente para um primeiro assalto de guerrilha nas áreas do norte do país. Alguns Talibãs, entre os quais Mustafa, receberam a missão de recrutar combatentes.

“Viajei para Kunduz, Baghlan e Samangan. Reuni-me com todos os meus velhos colegas e amigos das madrassa, falei com parentes, e em poucos meses já podia contar com 30 companheiros que conhecia bem e nos quais podia confiar” – Mustafa contou. – “Ganhei meu primeiro comando”.

“Esse é o grupo-núcleo. São Talibãs regulares. Explico-lhe como operamos. Mantemos informantes por toda a região. Eles nos trazem informações sobre possíveis alvos. Em geral, sobre horário de chegada ou a rota de um comboio de suprimentos da OTAN. Às vezes, são informes sobre os movimentos do Exército Afegão, da Polícia ou dos soldados da OTAN. Às vezes, algum detalhe importante sobre ataque a alguma base militar”.

“Nas operações específicas, sempre consultamos pessoas que se relacionem com os que fazem parte de nosso grupo – parentes ou amigos – para que apóiem nossa operação, e assim vamos aumentando nossa força numérica. São as pessoas que trabalham como agricultores ou operários na vida diária e, à noite, participam das operações como Talibãs” – disse Mustafa. Acrescentou que, depois de um ataque, a população local garante refúgio para os militantes.

Talibãs com Khalashnikovs
Mustafa calcula em cerca de 2.000 o número dos Talibãs na província de Baghlan, mas se se somam os colaboradores não regulares, o número se aproxima de 6.000 militantes.

“O apoio da população local é a real força de apoio dos Talibãs. Antes, contribuíam com caridade para as madrassas, mas agora a contribuição é feita diretamente para os Talibãs. As grandes operações são planejadas do mesmo modo, e os comerciantes locais são nossos patrocinadores. Pedimos a eles o dinheiro necessário, e sempre são generosos com nossas necessidades” – disse Mustafa.

Mustafa mostrou-me a gravação em vídeo, feita por um telefone celular, de um ataque dos Talibãs a uma base militar em Kunduz.

“No momento, todas as cidades são controladas pelo governo, e todas as regiões de montanha são controladas pelos Talibãs. Mas no inverno evacuamos muitas das nossas áreas. Por dois motivos. A neve nas montanhas dificulta muito nossa movimentação; as árvores estão sem folhas, e perdemos condições de camuflagem nas selvas densas de Baghlan. Temos de evacuar nossos postos e nos refugiamos nas áreas de fronteira, ao sul”.

“Os Talibãs são exclusivamente pashtuns?” – perguntei.

“Os pashtuns são a maioria, mas a situação está mudando muito. Quase 20% de nosso pessoal são de comunidades tadjiques e uzbeques que vivem no norte do Afeganistão. Nosso ponto de conexão são as madrassas. Todos estudamos juntos. Depois que os EUA invadiram o país, nós os convencemos a lutar conosco na resistência.”

Talibãs uzbeques
Mustafa confirmou que grande número de combatentes está chegando também da Chechenia, do Uzbequistão, do Tadjiquistão e da Rússia.

“Da Rússia? O senhor quer dizer, da Chechenia?” – perguntei.

Mustafa apanhou o telefone celular e mostrou-me a foto de um homem barbudo, de chapéu e vestido numa longa capa, de origem étnica difícil de identificar.

“É Khatab. Meu amigo. Veio da Rússia. Converteu-se ao Islã e tornou-se combatente jihadista. Foi morto em combate, há um ano.”

Perguntei a Mustafa como esses Talibãs do Uzbequistão, Chechenia, Tadjiquistão e Rússia ligaram-se aos Talibãs do norte do Afeganistão.

“O que posso dizer é que há uma conexão ativa entre o comando na Ásia Central e os Talibãs no norte do Afeganistão, e eles muitas vezes unem-se a nós, mas como se dá a conexão, não sei. É informação que não chega ao meu nível de comando. Nossos altos comandantes mantêm contato com seus equivalentes na Ásia Central. Se alguém chega ao Afeganistão, ou vai para a Ásia Central, saído do Afeganistão, são arranjos que se fazem nos planos superiores do comando”.

Jihad islâmica (logo)
Tentei levar a discussão para temas mais amplos, como tendências globais na militância islâmica, mas esse não é o forte de Mustafa. Seu pensamento, visão, compreensão estão orientados para o norte do Afeganistão. Conhece e entende a al-Qaeda não como estrategista, mas como jihadista. Mesmo assim, tem posição clara e formada sobre duas questões estratégicas: já há bases da al-Qaeda estabelecidas na província de Kunduz. E a guerra chegará ao Uzbequistão, mais cedo ou mais tarde.

“O Uzbequistão é o centro de todas as atividades contra nós. Todos os suprimentos vêm pelo Uzbequistão, e outros apoios que a OTAN recebe, também chegam pelo Uzbequistão. Para derrotar a OTAN, teremos de levar nossa guerra até o Uzbequistão, para cortar as linhas de apoio à OTAN” – disse Mustafa, em análise simples, de poucas palavras, sobre mais essa extensão da guerra do Afeganistão.

Um comentário:

  1. Os coletivos Política para Todos, primeiro, e Vila Vudu, depois, muito se beneficiam do trabalho excepcional de tradutora da Caia Fittipaldi, um trabalho pioneiro e de muito estilo. Os que seguem tais esforços não têm dificuldades para identificar o que é da sua lavra, comprovando que traduções são uma forma literária. O pioneirismo se identifica na escolha dos temas e textos postos ao alcance de pessoas não versadas em idiomas estrangeiros. Essa escolha recai sobre assuntos da maior importância mundial, de vez que tratam de peças essenciais de um tabuleiro diplomático em que as Potências centrais do Ocidente se deixaram arrastar, mediante conflitos armados mal-sucedidos.

    Permitem os textos que nos chegam às mãos a junção de peças que ajudam na formação de cenários, imprescindíveis às ações diplomáticas e aos estudos de Política Internacional. Tenho-os em meu baita arquivo virtual de mais que 67 mil mensagens, vários deles copiados, perdão, impressos. Como gostaria eu fossem organizados ou apostilados em cursos como os do Instituto Rio Branco e os de Relações Internacionais, estes a reproduzirem-se entre nós como se fossem coelheiras acadêmicas, de resultados discutíveis ainda. Lembro-me bastante de Glauber, que, por mais de 15 anos, descobria fascinado esse universo e lamentava sua medíocre repercussão no Brasil.

    Exemplo destes dias, o aberrante JN da Globo nada noticiou sobre a queda do regime tunisiano do general Zine el-Abidine Ben Áli, tão decisiva nos destinos das nações árabes e norte-africanas. Nenhum comentarista, ainda que superficial, pôs-se diante das câmeras televisivas para dizer algo ao público brasileiro sobre o momentoso assunto. Glauber preocupava-se com essa constatação de nosso alheamento, apesar de, em décadas passadas, contarmos com ótimos profissionais, na imprensa escrita e hertzeana, devotados a temas internacionais. Essas deficiências são inexplicáveis, numa conjuntura em que o Brasil é chamado a compromissos crescentes e a desempenhos decisivos. Os acontecimentos tunisianos abalam os regimes árabes, sobretudo os promovidos pelos EUA e, assim, alinhados a estratégias não-condizentes aos interesses fundamentais dos povos subjugados por prepostos do imperialismo.

    Os textos de Saiede Salim Chahzade (grafado prosodicamente à maneira anglo-saxã) são de valor inestimável, pois que lidam com as resistências islâmicas no Afeganistão, Paquistão e Uzbequistão. Explicam, além disso, princípios fundamentais do Islam e seus diferentes matizes e facções em luta. Como se sabe, é abissal a ignorância ocidental-"cristã" sobre a crença e a cultura dos povos que abraçam os ensinamentos de Maomé, em grande parte causada pela indiferença arrogante ou pelo paternalismo insuportável dos arautos do Evangelho, equivocadamente posto em confronto com o Alcorão. Mal intuem que Maria e Jesus (Aïssa) são sacratíssimos no Islam, o Filho também gerado por sopro divino no ventre sem-pecado da Virgem.

    Abraços do
    ArnaC

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