sábado, 18 de dezembro de 2010

Robert Fisk:Quem avisa, amigo é: nunca dê trela a espiões ocidentais

(e Teerã vazou, em 1979, MAIS TELEGRAMAS [sobre Teerã] que WikiLeaks!)

18/12/2010, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Diferente do que me informavam os boatos, a mulher disse, ao telefone, que não era espiã, mas simples attaché, que só queria conversar um pouco sobre o futuro do Líbano. Eram dias de seqüestros na capital do Líbano, e ser visto em almoço com o comensal errado terminava em porão nos subúrbios do sul de Beirute. Acreditei na mulher. E errei feio. Ela chegou com dois guarda-costas britânicos, armados, que sentaram à mesa ao lado. Minutos sentados num restaurante de peixe na parte alta do Raouche, e ela começou um interrogatório sobre armas do Hezbollah no sul do Líbano. Levantei-me e saí do restaurante. Na mesa do outro lado, havia dois homens do Hezbollah. Telefonaram para mim, na manhã seguinte. Tudo bem: tinham visto que eu saíra do restaurante. Mas eu que ficasse esperto.

Desde que aquela mulher mentiu – mais de dois anos depois, contaram-me que ela tinha medo de fazer o que fazia como agente de inteligência – sempre evitei embaixadas dos EUA pelo mundo. A não ser que seja para falar com diplomatas irlandeses, suecos e noruegueses que conheço, ninguém jamais me verá em embaixadas de países ocidentais, em lugar algum do mundo. E nunca fui sequestrado.

Interessante é que, quase no mesmo momento em que a embaixada britânica tentava aplicar-me aquele golpe, os iranianos publicavam em forma de livro, quantidades inacreditáveis de arquivos secretos da Embaixada dos EUA no Irã.

Os estudantes (Talibãs) consumiram longos dolorosos anos, depois da revolução islâmica de 1979, colando fragmentos rasgados das cópias dos telegramas diplomáticos enviados a Washington, pela missão dos EUA em Teerã. Os norte-americanos confiscaram todos os livros que chegaram aos EUA – ah, os gloriosos dias de papel, antes da internet – mas consegui comprar e tenho todos os livros em Beirute.

Dentre outras coisas, lê-se lá, num dos telegramas, a conclusão, redigida pelo attaché Bruce Laingen (13/8/1979), segundo a qual “a psique persa é de insuperável egoísmo (...). Resultado prático dessa psique é a preocupação quase total dos persas com eles mesmos, o que não deixa espaço para que compreendam pontos de vista que não sejam o de cada um”. Li e escrevi sobre o telegrama para o The Times há já quase 30 anos. E agora, lá está o mesmo telegrama, vazado por WikiLeaks, elevado ao trono de manchete pelo New York Times e por seu filhote International Herald Tribune, como se fosse extraordinário furo de reportagem. Não há – como se sabe – memória humana no New York Times. Lamento, mas esse furo é dos iranianos. E essa semana, sabendo que os documentos bem podem conter o nome de infortunados jornalistas que vomitam o que sabem sobre o primeiro attaché “da Defesa” de embaixadas ocidentais no Oriente Médio, foi um conforto saber que ninguém leria lá o meu nome.

Foi fascinante assistir a Hillary Clinton, na tentativa inicial de denunciar a torrente de telegramas de WikiLeaks como “ataque contra a comunidade internacional”. Em dois momentos, ela avisou aos jornalistas que também haveria nomes de jornalistas, nos telegramas – portanto, que ninguém viesse com questões sobre liberdade de imprensa, dado que WikiLeaks também conhece os nomes de muitos valorosos guerreiros midiáticos. O mais espantoso foi o efeito do “aviso”. Nem bem La Clinton recusou-se a confirmar a autenticidade dos 250 mil perfeitamente autênticos documentos – ela falou de “supostos documentos” – e lá estava a BBC, imediatamente, também duvidando da autenticidade de “supostos documentos”; como se a matéria que estivera na manchete da BBC de minuto em minuto, de hora em hora, todos os minutos e horas das recentes 24 horas pudesse ser boato, coisa inventada. Depois, infelizmente, a Al-Jazeera, cometeu o mesmo erro.

O problema, é claro, é que não é boato nem coisa inventada. E a arrogância pomposa que La Clinton considerou necessária, para explicar a diferença entre os telegramas diplomáticos (os quais, sim, têm alguma relação com a realidade, embora nem sempre bem escritos) e os “documentos”, que emergem de seu hoje muito reduzido gabinete diz tanto quanto a enxurrada de WikiLeaks. Porque essa senhora, que não poderá escrever a própria biografia, ordenou – e tenho de sacudir a cabeça para acreditar em tal coisa – que seus fâmulos espionassem na ONU.

Que La Clinton tenha mandado que seus escravos no Departamento de Estado brincassem de agentes secretos com essa velha e patética ONU – a besta que saltita pelo palco, zombando do fracasso das fracassadas políticas dos EUA para o Oriente Médio, esse arranha-céu decrépito no East River, embrulhado em asbesto suficiente para envenenar uma nação inteira de guardiões da paz, essa ruína burocrática, com seu patético secretário-geral, cujo inglês ainda carece de muito aprimoramento – mostra o Departamento de Estado dos EUA como é: instituição absoluta e totalmente sem qualquer serventia.

La Clinton mandou-os espionar detalhes encriptados da vida dos delegados, transações com cartões de crédito, até cartões de empresas aéreas mais usados. Mas quem teria interesse em ler o nonsense que o pessoal da ONU e seus salários superinflados escrevem, ou quanto gastam em almoços no Nobu com o cônsul da Nicarágua, ou quem paga as passagens de amantes de quem para ir a Havana nas beiradas desses voos da ONU?

Há muito tempo, a Air France concordou em entregar a espiões dos EUA os detalhes dos voos de seus clientes mais freqüentes. – Para que, então quereriam a mesma coisa, outra vez? E por que espionar a ONU, se se sabe que o pessoal lá dirige a organização mais cheia de furos e vazamentos do globo? Uma vez, recebi tantas cópias idênticas de relatórios de soldados da paz da ONU no sul do Líbano – o tenente-general aposentado William Callaghan, irlandês, é testemunha – que tive de pedir aos soldados da ONU que me checassem suas listas, para saber quantas vezes o meu nome lá aparecia, repetido.

Mas fiquemos só no Oriente Médio. Hoje sabemos que o presidente Hosni Mubarak do Egito “odeia o Hamas e os vê como parte da Fraternidade Muçulmana do Egito, que, vê como sua mais perigosa ameaça política”. Macacos me mordam. Para quem assistiu aos gângsters do Partido Nacional Democrático de Tio Hosni espancar a Fraternidade há duas semanas – para não falar dos policiais pagos a um dólar por dia, metendo na cadeia milhares de Irmãos – não chega a ser propriamente novidade. E tampouco é novidade, por falar nisso, que a imprensa egípcia sempre leal a Mubarak, depois das eleições, tenha alardeado o modo como o Partido Nacional Democrático “salvou a nação” com sua vitória massiva (tudo isso, claro, antes de conhecer-se qualquer resultado das urnas).

Quando Mubarak ouve o nome de seu adversário eleitoral Ayman Nour – homem encantador, com quem estive em Beirute, antes das eleições – diz que “sente náuseas”, segundo o telegrama de WikiLeaks. Exatamente o que Nour sentiu quando Mubarak o prendeu na prisão de Tora, antes das eleições de 2005. Todos aguardamos, naturalmente, para saber o que os telegramas diplomáticos realmente disseram sobre o facinoroso Yasser Arafat e – mais importante – o governo colonial de Israel na Cisjordânia. Mas nada temam, nenhuma verdade que lá exista jamais obnubliará os acintosamente arrogantes documentos “políticos” da lavra de La Clinton e seus antecessores.

A cada novo vazamento, mais e mais WikiLeaks expõe o desencaminhamento, o beco sem saída da política externa dos EUA e de seus supostos “aliados”. É. De fato. A comunidade internacional está, sim, sob ataque. Está mesmo!

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