terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Riscos do super-super-sigilo

23/12/2010, Oliver Miles, London Review of Books, vol. 33, n. 1, 6/1/2011
The Dangers of Over-Classification
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A CIA anunciou ontem que criou uma força-tarefa com nome e sigla autoexplicativos (“WikiLeaks Task Force”, WTF [1]), para avaliar o dano provocado pelos documentos publicados por WikiLeaks [2]. Até agora, a impressão geral é que o dano maior parece ter sido causado pela simples evidência do vazamento, e pela escala gigantesca, mais do que pelo conteúdo de qualquer dos dados publicados.

Na maioria dos telegramas, o que se vê são diplomatas profissionais e pressupostos competentes, fazendo o possível para entender e relatar eventos que ocorrem nos locais onde operam, como quem conheça o Departamento de Estado espera que façam. Considerados os telegramas que li (vindos do Oriente Médio ou de embaixadas que tenham relações estreitas na Região), só há telegramas classificados, no máximo, até “secretos” – o que parece indicar que se temia que a informação neles contida pudesse provocar “grave dano” à segurança nacional, se o telegrama classificado viesse a público. 

A primeira lição até aí é que o super-super-sigilo, que é erro em qualquer sistema de segurança, parece ser ainda mais prevalente hoje no Departamento de Estado dos EUA do que foi na diplomacia britânica no tempo em que servi. Os telegramas mais recentes foram distribuídos há apenas poucos meses. A informação neles contida, embora interesse a especialistas, não chega a ser propriamente desconhecida.

Um dos telegramas nos quais há alguma informação nova foi enviado da embaixada dos EUA na Líbia em dezembro de 2009 [3], e dá detalhes das discussões entre os líbios sobre possíveis vendas de armas –, em momento em que a opinião pública já discutia a possibilidade de os EUA estarem envolvidos nesse tipo de negócio; o tema, por exemplo, já aparecera discutido na lista de discussão, só para assinantes, do website da Associação Comercial EUA-Líbia. Curioso, isso sim, é que essas discussões entre EUA e líbios acontecessem no mesmo momento – e que tenham tido maior escopo – que idênticas discussões entre britânicos e líbios, sobre o mesmo assunto, que apareceram como prova de relação de corrupção em relatório recente, produzido por quatro senadores dos EUA, sobre o caso Megrahi [4].

Ainda não se leu nenhum telegrama publicado no qual algum diplomata dos EUA informe o Departamento de Estado que o primeiro-ministro de Israel humilhou o presidente Obama na discussão (que não houve) sobre as construções ilegais de Israel nos territórios ocupados. Analistas pró-árabes sugeriram que a falta de crítica dos atos de Israel implicaria conspiração, talvez até a manipulação de WikiLeaks por Israel. Completo absurdo. 

A verdade, talvez mais preocupante que qualquer conspiração, é que diplomatas dos EUA praticamente nunca criticam Israel. Talvez até aconteça de criticarem, mas, quando acontece, o telegrama é automaticamente classificado como “top secret” – telegrama capaz de provocar “dano excepcionalmente grave”.

Alguns dos telegramas mais interessantes foram enviados de Wellington, depois que autoridades da Nova Zelândia prenderam dois israelenses, suspeitos de serem agentes do Mossad, em atividade de falsificação de passaportes Neozelandeses; um dos quais, portador dos documentos de identidade de um homem tetraplégico. O primeiro-ministro neozelandês conseguiu arrancar de Israel um pedido formal de desculpas. 

Para o embaixador dos EUA, Charles Swindells, os “kiwis” faziam tempestade em copo d’água “e aproveitavam a oportunidade para reforçar sua credibilidade junto à comunidade árabe, para ajudar exportadores neozelandeses a conseguir acesso a um mercado maior e mais lucrativo”. O líder do Partido “Labour” da Nova Zelândia comentou que Swindells conseguira o emprego, por ser um dos principais doadores-financiadores do Partido Republicano, não por entender de diplomacia [5].

Bom número de telegramas vindos de embaixadas no Oriente Médio enfatiza o medo que o Irã inspiraria a governos árabes, e o quanto tantos confiavam que os EUA os livrariam da ameaça iraniana. Não há aí qualquer novidade: essas, precisamente, são ideias insistentemente repetidas por grande número de líderes árabes. A questão não é que os líderes árabes pensem assim: a questão é que as populações árabes não pensam assim. 

O Irã é país muito admirado entre as populações do Oriente Médio, precisamente porque é visto como Estado que desafia e enfrenta, precisamente, Israel e os EUA. Em larga medida, os telegramas refletem atitudes e modos de pensar exclusivos dos EUA; seria muito interessante saber se os telegramas diplomáticos britânicos ou franceses pintam o mesmo quadro. Quanto a isso, WikiLeaks pouco ajuda.

Um dos telegramas mais reveladores e mais interessantes que li relata uma reunião, em março de 2008, entre o rei Abdullah da Arábia Saudita e visitante norte-americano de alto nível [6]. Em discussão interminável, que durou uma hora e meia, a conclusão é que o rei apresentou “um pedido” – [que seria] “criticamente importante restaurar a credibilidade dos EUA no mundo” – e absolutamente nem uma palavra sobre a disputa palestinos/Israel! 

Há explicações que talvez expliquem parcialmente essa omissão: o visitante era conselheiro da Casa Branca para assuntos de contraterrorismo; questões entre Israel e palestinos não estavam previstas em sua agenda; ou ainda havia esperanças de que Obama manter-se-ia na posição de mediador equilibrado – que de fato assumira, no discurso do Cairo, três meses antes; ou, ainda, porque não é do estilo de pensamento e discussão dos árabes tocar só superficialmente, conversacionalmente, em questões sobre as quais haja discordância profunda. Mas ainda assim é chocante a evidência de que não foram mencionados, naquela reunião, nem os palestinos nem a iniciativa de paz dos sauditas. Já seria chocante, no contexto de março de 2008. E muito mais chocante é hoje, quando já se sabe que Obama tentou forçar o governo de Israel, por exemplo, na questão das construções ilegais em território palestino ocupado, e foi atropelado, triturado.

Para terminar, uma palavra de cautela. Os documentos publicados por WikiLeaks, como quaisquer documentos, não devem ser tomados como palavra final em nenhuma das questões que lá se discutem. O que um diplomata norte-americano, por honesto e profissional que seja, relata como acontecido em terras estrangeiras não é a palavra do evangelho. 

Dia 17/12/2010, o jornal Jerusalem Post publicou – sem qualquer comentário e como matéria assinada pelo editor-chefe do jornal, exatamente o texto de um dos telegramas diplomáticos, e que parece ser resumo secreto de instruções passadas pelo Departamento de Estado dos EUA às embaixadas dos EUA pelo mundo. A matéria levou o título de “Reorientation of Policy Priorities: Israeli-Palestinian Conflict’[7]. Embora haja um jogo de palavras logo na manchete (“WikaLikes”), o artigo foi facilmente aceito pelos leitores como genuíno, escrito por algum experiente ex-agente da CIA; e circulou amplamente pela rede, com muitos comentários. Até que analistas mais atentos revelaram a fraude. E houve algum embaraço e explicações de vários lados. Ninguém entendeu perfeitamente o objetivo ou os interesses do jornal e do editor-chefe, autor do “experimento”.



 Notas de tradução:
[1] Em internetês clássico, WTF significa “What The Fuck?” [em português, em internetês também clássico = “Que Porra é Essa?!”]
[2] Ver, dentre outras matérias de jornal, todas com o mesmo conteúdo: Viewing cable 09TRIPOLI950,LIBAN HEU SHIPMENT SECURE; NO DECISION YET REGARDING NEXT

[3] Pode ser lido em Cable Viewer  do item [2] destas notas.
[4] O relatório citado pode ser lido (mas não copiado) em: Justice Undone – The release of the Lockerbie bomber
[5] Sobre isso, ver “Goff lashes out at ex-ambassador”, 23/12/2010, New Zealand Herald 
[6] Em 28/11/2010, Guardian, UK, em: US embassy cables: Saudi king’s advice for Barack Obama

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