domingo, 12 de dezembro de 2010

O Testamento de Howard Zinn


12.Dez.10 :: Outros autores
Howard Zinn
Howard Zinn entregou o original do seu último livro ao editor um mês antes da sua morte em 27 de Janeiro passado. Figura proeminente dos movimentos pacifista e antibelicista, Zinn foi o mais destacado dos inúmeros dissidentes norte-americanos. É sobre a importância deste seu último livro, A Bomba [The Bomb], publicado postumamente que Ben Dandelion nos fala.


Falecido este ano, Howard Zinn [1] era conhecido principalmente pela sua obra A Outra História dos Estados Unidos, um livro citado até nos Simpson e nos Sopranos, e que inspira a personagem interpretada por Matt Damon no filme Good Will Hunting. Este livro, que dá uma visão da história norte-americana dos últimos 500 anos de imperialismo, colonização e racismo, não foi academicamente bem recebido, e os seus críticos classificaram-no de polêmico e com uma visão subjetiva da História. Em última análise, Zinn era um ativista, o que deixava transparecer no seu trabalho acadêmico tal como nos seus ensaios e textos mais políticos [2].

The Bomb [A Bomba], entregue ao seu editor um mês antes da sua morte, entra nesta última categoria. Nele, Zinn reúne dois ensaios, um intitulado «Hiroshima, breaking the silence» [Hiroshima, romper o silêncio] e o outro The bombing of Royan [O bombardeio Rouen] em 17 de agosto de 1942. Jovem desejoso de ser desmobilizado, Zinn recorda que celebrou o lançamento da bomba atômica, que significou para ele o final de uma guerra a que não queria voltar. Tinha participado no bombardeio da cidade francesa de Rouen precisamente três meses antes. O ensaio rememora essa irrefletida comemoração, e o desejo de cumprir as ordens recebidas naqueles meses de 1945. Com provas históricas defende daquelas missões era necessária e interroga-se sobre o que precipitou uma ação militar que ia para lá da lógica militar e das sensibilidades morais.

Tal como Zinn, também eu mudei de mentalidade sobre a necessidade e glória da Guerra. Quando terminei o colégio quaker [3] aos 17 anos queria ser piloto de combate. Mas numa viagem pelo mundo em bicicleta cheguei à mesma conclusão de Zinn: não há nenhum «eles», não há mais do que um «nós» global. Digo com muita alegria que mudar de mentalidade não foi nenhuma e não deve assim ser considerada como um sinal de debilidade, como tanta vez sucede com os políticos, mas uma reflexão criativa. Naturalmente, agora que sou um pacifista comprometido, espero que as mudanças nas pessoas sigam o mesmo rumo que seguimos Zinn e eu próprio, em vez do contrário: passar de pacifistas a belicistas.

Contudo, Zinn também se entra por argumentos mais complexos que o do simples pacifismo. Crítico das descrições de qualquer parcela da humanidade como algo de «menor» consideração, Com razão, Zinn aponta que só desumanizando o inimigo, estratégias como os bombardeamentos por saturação ou o lançamento de bombas atômicas podem ser consideradas possíveis por parte de pessoas que até as consideravam morais.

Recordo uma análise dos media do sociólogo Christie Davies que explicava como a humanidade podia em qualquer momento ser descrita como membros inominados de um grupo ou como dados estatísticos, e que o seu status moral na cobertura dada pela imprensa muda em função do grau de humanidade que se lhes atribui. «Dezoito mortos num acidente de autocarro» trata os mortos como estatística. É o que acontece no caso da guerra, em que desumaniza ou demoniza o «inimigo» até ao ponto em que matá-lo já não se compreende como um assassínio. E onde já não são vítimas «inocentes», mas apenas «inimigos mortos».

Trata-se de um processo totalmente consciente dos Estados e dos meios de comunicação que pode ser comprovado na censura das imagens que documentam os efeitos das bombas atômicas nos anos seguintes à guerra. Zinn defende, implicitamente, que se nos colocarmos na situação do «inimigo» já não podemos justificar a ação militar proposta, então, estamos moralmente em falta. Isto pode desembocar numa espécie pacifismo, mas de uma classe tal que faz as críticas de forma diversa e pode com mais agudeza examinar cada ação proposta à luz de uma moral mais globalizante.

Nestes casos particulares, sobretudo na destruição de Rouen, na realidade povoada por aliados e não por inimigos, Zinn defende que motivos de orgulho militar, da experimentação de novas tecnologias (foi em Rouen que se usou pela primeira vez o napalm) e o desejo de vingança impuseram-se ao fato de nada disso ser estrategicamente necessário: O porto de Rouen era um elemento de diversão secundário que não representava qualquer ameaça ao rápido avanço para Berlim em Maio de 1945.

Dito isto, os mesmos «males» que se supunha que a guerra ia derrotar estavam implícitos nas ações dos aliados. Todas as potências aliadas tinham um histórico de colonização e todas tinham anteriormente invadido outros países, tal como acusavam que faziam a Alemanha e o Japão. Todas defenderam os seus impérios contra os movimentos de independência nos anos seguintes a 1945.

Em última instância, todas promoveram ações militares com o resultado de milhares e milhares de civis mortos. Churchill descreveu o bombardeio de saturação de Dresden como uma «contundente incursão». Então, o racismo tanto apontava o sistema social dos EUA como avivava a retórica de fazer avançar na guerra contra o Japão e a Alemanha. Também neste sentido, «eles» eram na realidade iguais a «nós». Apesar disso, a retórica da guerra liga-se a um «eles» considerado como algo menor.

Algumas partes de The Bomb não são fáceis de ler, tendo em conta que relatam o sofrimento infligido por bombardeios: é um livro que enfurecerá alguns. Alguns resistirão á sua análise histórica, à sua miscelânea de argumentos a favor, e haverá os que dirão que Zinn, simplesmente, não compreendeu a verdadeira natureza das decisões que havia (que ainda há) que tomar. O que mostra, no entanto, é a divisão que existe entre os que circulam pelos passeios do poder, e os que, como nós, não sabem realmente o que acontece e só sabem da defesa da necessidade que eles fazem com que a guerra continue.

Infelizmente o livro de Zinn continua oportuno e crucial. Como último testemunho de uma vida de trabalho acadêmico e ativismo, também nos serve para levarmos muito a sério tudo o que escreveu.

N. do T.:

[1] Artigos de Howard Zinn em odiario.info:
«Sacco e Vanzeti»  e «A História tem de ser criativa».

[2] People´s History of the United States: 1492 to present, não está traduzido em Portugal. Há traduções em castelhano com o título de La otra historia de Estados Unidos de Ed. Hiru, Hondarribia/Fuenterrabía, 1997 e Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2004.

[3] Os quakers, comunidade religiosa nascida na Inglaterra do século XVII, que se distinguiu pelo seu ativo pacifismo e o seu compromisso humanitário.
*Ben Dandelion é Professor honorário da Universidade de Birmingham.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.