sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

“Essa embaixada (dos EUA) muito apreciaria” (saber o que fazemos quanto à Blackwater...)

WikiLeaks - Comentário e tradução da Vila Vudu

Todos os telegramas publicados por WikiLeaks são leitura interessantíssima, mil vezes mais interessante do que ler o que “pensa” o Demétrio Magnolli sobre seja lá o que for. 

Há uma experiência psicológica, emocional e física, que só se tem ao ler os próprios telegramas – e que não se tem ao ler o conteúdo editado dos telegramas e publicado em jornais. Quando se leem os próprios telegramas, o leitor é o seu próprio editor – e não há nenhuma voz jornalística entre o leitor e a fonte. 

Quando se leem os telegramas editados, o que primeiro se lê é a interpretação do jornalista – quando não só a versão do jornal-empresa, que os jornalistas-empregados assumem como sua. 

Não há técnica jornalística que consiga encobrir completamente a voz do editor e do redator. Se o editor ou o redator são jornalistas, ouve-se necessariamente a voz do jornalista ACIMA da voz da fonte. E a informação chega ao leitor NECESSARIAMENTE alterada. Esse é o problema do jornalismo, que não há deontologia que resolva. 

Quem pense em espinafrar a internet, sob o argumento de que a internet não admite o contato físico e que, por isso, “a revolução não será tuitada”, das duas uma: ou não sabe que o jornalismo tampouco admite contato físico, ou, então, finge que não sabe e quer enganar os bobos. Mas, sim, parte significativa do poder imbecilizante, homogeneizante, fascistizante, da televisão advém, sim, de a televisão oferecer um forte simulacro de contato físico.

Por tudo isso, quando o interpretador é o Demétrio Magnolli, ouve-se, muito mais do que a voz de quem fale nos telegramas, a voz do Demétrio Magnolli. Por isso, exatamente, o Demétrio Magnolli vive de repetir, em jornais e televisões, que todos devemos dar mais atenção ao Demétrio Magnolli que aos telegramas e à internet. 

Quem se satisfizer com isso, que pague para ler o Estadão, e satisfaça-se com as bobagens uspeano-udenistas do Demétrio Magnolli. Entra-se assim facilmente, automaticamente, num círculo vicioso de repetições, num modo de repetição autista de ideias prontas. E morre a informação, o fato e, de fato, morre também o jornalismo. (Mas há quem goste. O William Waack com certeza adora, ou não se poria lá, des-jornalisticamente, a fazer escada para que Demétrios Magnollis falem sem parar, dizendo só o que satisfaça ao próprio William Waack e à GloboNews, mas que certamente não ME satisfaz. Falo por mim, claro. Seja como for, pode ser até que alguém goste, mas ninguém precisa, de fato, saber o que pensa Demétrio Magnolli sobre WikiLeaks e jornalismo. Eu, com certeza, NÃO PRECISO.)

Por essas e outras é que, sim, a publicação dos telegramas por WikiLeaks modificou para sempre o jornalismo. 

Exemplo disso se encontra no telegrama abaixo. Foi pouco divulgado nos jornais brasileiros, porque os jornais brasileiros pressupuseram (viciosamente, tolamente, erradamente, bobamente) que a ninguém interessaria saber como, exatamente, opera a empresa Blackwater – uma espécie de exército privado, armado até os dentes, que anda pelas guerras dos EUA, pelo mundo, e que pode, muito bem, aparecer por aqui, de repente. 

Na África, esse telegrama causou escândalo – porque nenhum jornal, por lá, publicara, antes de WikiLeaks, a notícia que aí se lê: que o governo do Djibuti autorizara a empresa Blackwater a operar um navio privado armado em seu território. No resto do mundo, a notícia causou escândalo, porque nenhum jornal publicara, antes de WikiLeaks, que haveria um navio privado armado sob bandeira dos EUA com licença para matar, não fazer prisioneiros e não oferecer atendimento aos inimigos feridos, e, tudo isso, com pleno conhecimento do “AFRICOM, do CENTCO e de funcionários da embaixada em Nairobi” [do telegrama, abaixo]. 

Cá na Vila Vudu, esse telegrama causou furor – porque nenhum jornal ou blogueiro, por aqui, deu qualquer sinal de interesse por noticiar (para rir dele, que fosse!) a triste posição em que ficou, no Djibuti, o infeliz embaixador dos EUA. Nesse telegrama, o coitado SUPLICA que lhe digam o que fazer com os empresários-bandidos da Blackwater: “devemos tratá-los como bandidos ou como empresários? Essa embaixada muito apreciaria... (etc. etc.).” Leiam aí. 

Quando, algum dia, algum Estadão ou algum Demétrio Magnolli ou alguma D. Dora Kramer, ou Clóvis Rossi, ou Eliane Cantanhede, produzirão informação de melhor qualidade e/ou reflexão crítica mais rica, mais historicamente relevante, mais humana e politicamente interessante, mais jornalisticamente objetiva e aderida ao fato, e, até, mais ética, do que aí se lê DE GRAÇA, por méritos exclusivos do jornalismo revolucionário e progressista de WikiLeaks?! 

Viva WikiLeaks! Só WikiLeaks nos salvará de Estadão, Folha de S.Paulo, Rede Globo, revista (NÃO)Veja e coisa e tal! 

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ASSUNTO: DJIBOUTI APROVA EMPRESA BLACKWATER PARA OPERAÇÕES DE CONTRAPIRATARIA COMERCIAL
Reference ID
Created
Released
Classification
Origin

[cabeçalho, aqui omitido]

C O N F I D E N T I A L SECTION 01 OF 02 DJIBOUTI 000113 – SENSITIVE

1. (C) RESUMO. A empresa norte-americana de segurança Blackwater Worldwide (BW), recebeu autorização do governo de Djibouti para operar um navio armado a partir do porto de Djibouti, para proteger cargas comerciais embarcadas, contra os piratas que operam ao largo do litoral da Somalia. O navio da Blackwater que navega sob bandeira dos EUA deve chegar no início de março, e terá tripulação de 33 cidadãos norte-americanos, incluindo três equipes armadas de seis homens que operarão em turnos ininterruptos. A Marinha de Djiboutian manterá sob sua guarda [orig. will secure] as armas da Blackwater (i.e., metralhadoras calibre .50) enquanto o navio permanecer ancorado em Djibouti.  Blackwater não tem planos para prender ou deter qualquer pirada, mas usará força letal contra os piratas se necessária; está desenvolvendo um [documento] SOP [Standard Operating Procedure] que atualmente está sendo revisto pelo departamento jurídico e que será partilhado com o governo dos EUA. A operação de contra-pirataria da Blackwater ainda não tem outros clientes, mas a empresa espera que os negócios comecem a desenvolver-se depois do lançamento público da operação em março, em Djibouti com o governo do Djibouti. FIM DO RESUMO. 

2. (C) Dia 8 de fevereiro, Robert Emmett Downey, ex-funcionário do serviço exterior dos EUA (FSO) e Gerente de Desenvolvimento da Blackwater Worldwide para a África, apresentou a seguinte atualização ao embaixador Swan (DCM) e a Bob Patterson (TDY da Embaixada em Nairobi): 

a) Hassan Said Khaireh – tríplice coroado [orig. triple-hatted] como conselheiro de segurança nacional do Djibouti, chefe do serviço de segurança/inteligência e diretor do Gabinete Militar do presidente Guelleh – deu permissão à BW para operar seu navio armado em Djibouti.  BW encontrou-se com Hassan Said dia 7/2, depois de encontro anterior em WashDC entre o presidente da BW Erik Prince e Cofer Black com o embaixador do Djibouti nos EUA Robleh Olhaye.  Esse é o único acordo, até o presente que a BW já fez com governo anfitrião na área, mas a BW espera engajar os governos do Omã e do Quênia no futuro (e.g., no caso de problema mecânico, as únicas instalações capazes de fazer qualquer conserto no navio da BW estão localizadas em Mombasa). Dentro do governo dos EUA, a BW notificou o AFRICOM, o CENTCO e funcionários da embaixada em Nairobi.

b) O navio da BW é o “McArthur”, de bandeira norte-americana, 183 pés, ex-NOAA [National Oceanic and Atmospheric Administration]. Embora tenha espaço para pouso de dois helicópteros, só carregará um avião-robô não armado [orig. UAV (unmanned aerial vehicle] e nenhum helicóptero (a BW considera os helicópteros caros demais).  O navio será armado com metralhadores de calibre .50, e pode dar proteção a comboios de até três navios.  A Marinha do Djibouti manterá sob sua guarda as armas da BW, quando o navio estiver atracado, e inspecionará os depósitos de armas da BW. Segundo Downey, o conceito comercial da BW – oferecer navios como escolta de outros navios que precisem de proteção – é consistente com recentes recomendações da International Maritime Organisation (IMO) e da indústria naval, que recomenda que navios comerciais não transportem armas ou equipes armadas de segurança (e.g., ver reftel [outro telegrama] sobre a 85ª sessão do Comitê de Segurança Marítima da IMO). O “McArthur” permanecerá atracado em Djibouti por 36-72 horas a cada 30 dias, para reabastecimento e recarregamento [alimentos etc.]. Segundo Downey, BW é a única empresa que possui navio próprio.

c) Todo o pessoal a bordo do navio da BW serão cidadãos norte-americanos: 15 da tripulação e 18 guardas armados (três equipes de seis homens que operarão em turnos ininterruptos de oito horas). Esses 33 “operadores” servirão por períodos rotativos de 60 dias. (...) 

d) (...) O navio da BW, o “McArthur”, terá duas câmeras de vídeo para gravar todas as atividades de contrapirataria da BW.

e) A empresa BW não tem planos para prender ou deter piratas. Embora os franceses já tenham transportado piratas para serem presos em Puntland, Downey disse que a BW não planeja trabalhar assim, nem na Somália nem no Quênia (observou que os acordos PUC [Responsible Utility Customer Protection Act] com o Quênia são acordos entre governos). A BW dará conhecimento do [documento] SOP às embaixadas de Djibouti e Nairobi, depois de aprovado; o documento sobre procedimentos padrão está atualmente sob revisão do departamento jurídico da empresa, uma vez que “não há precedentes de operação paramilitar em ambiente puramente comercial”. Ao mesmo tempo em que afirma que a lei marítima internacional permite uso de força letal contra piratas, a BW [telegrama DJIBOUTI 00000113  002 OF 002] também reconhece a necessidade de respeitar as leis humanitárias internacionais. Uma das preocupações é, por exemplo, definir se a BW será legalmente obrigada a dar assistência a piratas feridos, no caso de essa assistência comprometer a capacidade da empresa para garantir proteção aos seus clientes.

(...)

4. (C) CONTINUAÇÃO DO COMENTÁRIO. A presença da Blackwater em Djibouti fará dela uma das maiores empresas comerciais dos EUA em operação nesse país. Como território em que está localizada a única base militar dos EUA na África, além de o país possuir amplas instalações portuárias comerciais, o Djibouti tem interesse comercial em apoiar investidores estrangeiros, inclusive empresas norte-americanas. Os executivos da Blackwater trabalham para envolver altos funcionários dos governos do Djibouti e dos EUA, em solenidade de lançamento de sua operação, a ser amplamente divulgada, prevista para março de 2009. 

Essa embaixada muito apreciaria receber instruções do Departamento de Estado sobre o nível apropriado de engajamento com a Blackwater, com vistas a cumprir as responsabilidades que cabem ao governo dos EUA de oferecer pleno apoio a empresas comerciais norte-americanas[1]. FIM DO COMENTÁRIO. [assina] SWAN



NOTA DE TRADUÇÃO

[1] Sobre isso, lê-se hoje em African Online News, matéria de 1/12, de Djibouti, em: Djibouti cleared Blackwater to kill pirates: “Esse “lançamento público” jamais aconteceu. Segundo investigação feita pelo New York Times, o novo governo Obama reagiu negativamente aos planos da Blackwater para ação armada anti-pirataria e a secretária de Estado Hillary Clinton obrigou a empresa a cancelar os planos que tinha para Djibouti.” [Indicação, pelo Twitter, em: Blackwater Djibouti full story-US Amb “made it clear he was skeptical”Clinton advised against

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