terça-feira, 2 de novembro de 2010

O dia em que Obama sonhou que era Lula

3/11/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online - The day Obama dreamed of being Lula
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

SÃO PAULO. Nos seus mais empolgados sonhos na Casa Branca, o presidente Barack Obama dos EUA voeja como um anjo, acima do comício organizado por Jon Stewart/Stephen Colbert, "Comício para Restaurar a Sanidade", que arrastou pelo menos 200 mil pessoas para o Mall em Washington, DC, no sábado; ali, Obama verifica que "a sanidade venceu o medo" – como venceu, com ginga e garbo; e tranquiliza-se de vez, convencido, do fundo do coração, de que seu Partido Democrata superará as sombras do medo nas eleições de meio de mandato e manterá seu governo nos trilhos.

Ooops! Roteiro errado. Houve sanidade no mundo, sim. Mas os eleitores eram brasileiros, não norte-americanos! Os brasileiros, que, no domingo, 31/1, elegeram Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT) do atual presidente Lula da Silva –, a primeira mulher eleita Presidente da República no Brasil, por mais de 12 milhões de votos de diferença sobre o concorrente, o social-democrata convertido em versão tropical do Tea Party, José Serra – um "Serra Palin".

Os 56 milhões de votos dados a Dilma configuram a maior vitória eleitoral de qualquer coalizão de esquerda em qualquer canto do mundo e em todos os tempos.

A campanha eleitoral na eleição presidencial em 2010 foi tão feia, degradante e mesquinha quanto qualquer eleição parlamentar de meio de mandato nos EUA – acrescida da interferência de milhões de poderosos evangélicos e até do Papado da Igreja Católica Romana, que pediu, em canhestras entrelinhas, que o povo não votasse em Dilma, porque ela seria favorável à legalização do aborto (a candidata declarou que não é). Isso, para não falar de técnicas subreptícias, como a de denunciar a candidata de Lula como "terrorista", porque lutou contra a ditadura militar brasileira que governou o país a partir dos últimos anos da década dos 1960s – e foi torturada.

Obama deve ter ficado de queixo caído, ante os mais de 80% de aprovação popular para um presidente que completará oito anos de governo e às vésperas de deixar a presidência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil, que o próprio Obama declarou "O cara".

Pois "O cara" não apenas se elegeu e reelegeu-se (2002 e 2006): está também colhendo os louros por ter feito a sucessora – funcionária pública conhecida como inteligente e competente, mas praticamente desconhecida, a ponto de, até há pouco tempo, nenhum motorista de táxi em São Paulo reconhecê-la pelo nome ("Dilma? Não conheço."). Vá sonhando, Barack... Até que soa o despertador no iPhone, e o presidente da "última grande potência" acorda, para encarar a plena extensão da catástrofe que as eleições da 3a-feira reservam para os Democratas nos EUA.

Foi uma visão? Obama sonhou acordado?

É a economia, estúpido! A Obama, só resta sonhar com surfar nos indicadores econômicos que coroam o governo Lula: a renda per capita cresceu 23% entre 2002 e 2010; o desemprego nunca foi menor que hoje (6,2%); o salário mínimo, ajustado acima da inflação, aumentou 65% – para não falar dos mais de 20 milhões de brasileiros tirados da pobreza e convertidos em classe média (nos EUA de Obama, 40 milhões de norte-americanos passaram a viver na pobreza e abaixo da linha de pobreza, na miséria). Assim como o Sonho Americano já só sobrevive na UTI, o Sonho Brasileiro mais parece um Camelot remixed como telenovela (com final feliz à moda Hollywood).

Quem são esses sonhadores do sul que elegeram Dilma? Essencialmente, uma classe média urbana, o subproletariado do nordeste pobre, a nova classe média recém chegada a vida mais digna e porções consideráveis, progressistas, da classe média clássica.

A elite brasileira das finanças, concentrada em São Paulo, e conectada em linha direta com Wall Street, evidentemente não votou em Dilma (nem a City de Londres, através do Financial Times; nem votaram em Dilma as quatro famílias que controlam toda a mídia corporativa no Brasil; nem, aliás, o establishment da política externa de Washington; a lista é longa). A elite financeira neoliberal é quem ainda hoje define as linhas da política econômica no Brasil. Um dos toques de genialidade do presidente Lula foi, exatamente, não se meter com eles – tanto quanto jamais ter permitido que eles se metessem com o presidente e o governo político.

Mas há grandes problemas à frente. O Brasil continua a manter taxas reais de juros absurdamente altas. Não surpreende, pois que chovam dólares norte-americanos por aqui, como se o mundo fosse se acabar. Mesmo assim, o Brasil não cresce tão rapidamente quanto os demais BRICs – Rússia, Ìndia e China. Por mais que milhões de brasileiros tenham votado certos de que elegiam um novo projeto de Brasil, o Brasil ainda carece gravemente de estratégia de desenvolvimento sólida, que efetivamente manifeste as aspirações da maioria da população.

O tempo voa. Em Lula, Dilma sempre terá mentor reconhecido e respeitado em todo o planeta, homem que se pode orgulhar da experiência de negociador, adquirida ao longo de 35 anos, durante os quais nenhuma das negociações de que participou foi fácil ou muito afastada do centro mais duro dos grandes problemas nacionais e planetários. Por sua vez, Lula agora, pelo menos teoricamente, estará livre para construir as delicadas reformas política e trabalhista, e para tentar reorganizar o complexo tabuleiro político no Brasil. Mas estará correndo contra o relógio, rumo ao ponto de colisão; Lula levará Dilma com ele, para apresentá-la aos principais líderes mundiais, na próxima reunião do G-20, na Coreia do Sul.

Há três possíveis vias à frente: lulismo sem Lula; Lula candidato à presidência em 2014; ou o pós-lulismo, com Lula na Unasur (União das Nações Latino-americanas) ou como secretário-geral da ONU.

Claro que aparecerá em cena algum traço de esquizofrenia – porque os brasileiros somos assim. Dilma apostará forte no MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) e na integração política da América Latina – mediante a Unasur –, ao mesmo tempo em que se alinhará às potências ocidentais na Organização Mundial do Comércio.

O importante e influente (e furiosamente demonizado) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) – conceito que, se se tivesse materializado na China, teria sido como foguete amarrado ao rabo do Partido Comunista – apoiou oficialmente Dilma, nas eleições contra Serra. Mas Dilma continuará a construir as controversas hidrelétricas que, para os ecologistas, são eco-desastres.

Dilma apostará pesado na estabilidade macroeconômica e no controle da inflação – mas, ao mesmo tempo, como já declarou, não fará cortes nos programas sociais; não tomará atalhos, no processo de melhorar a infraestrutura, hoje em péssimo estado; e não desperdiçará os tempos de bonança que virão associados ao oceano de petróleo descoberto pela gigante Petrobrás, em camadas do pré-sal.

O problema principal para o Brasil é ainda o chamado "modelo", pelo qual o país exporta uma tsunami de minério, de petróleo não refinado, de soja e de celulose não processadas para a China, principal parceiro comercial do Brasil, depois que a China derrubou os EUA dessa posição. E isso, ao mesmo tempo em que caíram os números da exportação de produtos manufaturados. Lula disse à Vale – principal produtora mundial de minério de ferro – que trate de construir usinas de produção de aço. E disse à Petrobras que construa refinarias. Mas ainda é pouco.

É cedo ainda para falar em desindustrialização no Brasil –, porque o país ainda conta com ampla base de manufatura. Mas a China já detonou pelo menos duas indústrias brasileiras que chegaram a ser competitivas – as indústrias de têxteis e de calçados - (e veja-se o que a desindustrialização já fez aos EUA). Não basta exportar matérias primas; o jogo é buscar valor agregado, ao estilo da Coreia do Sul.

Para que isso se faça, Dilma terá de fazer o que nem Lula atreveu-se a tentar: mexer, por de cabeça para baixo, o sistema de impostos que, no Brasil, ainda é bizantino. Terá de atacar três reformas estruturais – política, fiscal e agrária. Lula nada pôde fazer quanto a isso, porque não conseguiu construir base política suficientemente forte. Dilma talvez consiga.

A reforma fiscal é essencial, porque, como nos EUA, os ricos continuam sangrando os mais pobres e os assalariados pagam o preço. Mas já quem diga que a reforma agrária seria questão ainda mais complexa.

Tudo depende de como se defina reforma agrária. Essencialmente, é uma política que visa a democratizar a posse da terra. Nunca houve nada, sequer parecido, no Brasil. A burguesia local aliou-se aos grandes proprietários para exportar matérias primas, e só. Nesse processo, expulsou do campo massas e massas de brasileiros, rumo às grandes cidades e sempre puderam contar com um exército industrial de reserva, que jogou para baixo os salários. Embora resumido e muito simplificado, esse processo explica também o crescimento explosivo da violência urbana no Brasil.

Agora é preciso, como diz o MST, outro tipo de reforma agrária, que vise ao que se chama "agricultura popular"; agro ecologia para o mercado interno, não para exportação, e como parte de um novo modelo de desenvolvimento, com menos capital estrangeiro no comando do agro-business. Se Dilma avançar nessa direção, o mundo reconhecerá que Deus é, sim, brasileiro. E mulher.

Como disse um respeitado teólogo brasileiro, Leonardo Boff, não há dúvidas de que o Brasil será player essencial no novo tabuleiro político multipolar e global, porque o país guarda a chave de fatores ecológicos cruciais que podem, sim, servir para recalibrar o sistema ecológico dilapidado de todo o planeta.

Mas ainda é cedo para saber se Dilma conseguirá não perder de vista o Grande Quadro. Sem esquecer que a trajetória atual do Brasil pode vir a levar à constituição da primeira grande potência tropical global. Será potência subimperial? Será apenas cordial? Ou está nascendo uma espécie nova, mutante, imprevisível de subimperialismo benigno?

Ontem, 2a-feira, Obama achou tempo em sua super over carregada agenda de véspera de eleição, para telefonar a Dilma, cumprimentá-la pela vitória e convidá-la a visitar os EUA. Pelo menos por um instante, Obama conseguiu realizar o sonho de estar fazendo exatamente o que Lula, "o cara", faria, se estivesse em seu lugar.