quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Como tutelar o seu leitor

(Este artigo é a terceira parte do Dossiê GloboGate. Veja ao final links para outros textos)


Meu Deus, o JN tem acesso a isso http://bit.ly/cVNb0M e faz aquela matéria sobre vazamento de sigilos. Na tarde de sexta-feira (22/10), o jornalista Luís Nassif fez questão de republicar, no Twitter, mensagem que recebera de LuizKK, outro membro da rede. Pouco antes, os sites dos jornais paulistas haviam disponibilizado, sem alarde, a íntegra de algo que haviam explorado por dias, em suas edições anteriores: o depoimento prestado à Polícia Federal (PF), uma semana antes (15/10), pelo jornalista Amaury Ribeiro.

O espanto de LuizKK e Nassif era justificado. Amaury é o personagem central de um tema que acompanhou (e influenciou) toda a disputa eleitoral: a quebra dos sigilos fiscais de Verônica Serra, filha do candidato do PSDB, e alguns expoentes do partido. A aparição do documento comprovou algo de que já se suspeitava: a parcialidade da velha mídia, ao atribuir, com insistência, o vazamento à campanha de Dilma. Mas revelou, também, algo novo. Na “semana em que as elites perderam a noção” (ler o texto de abertura deste dossiê), dois veículos – a Folha de S.Paulo e o Jornal Nacional (o JN, na mensagem de LuizKK) – levaram esta parcialidade a um ponto extremo, que um dia será tema de estudo nas escolas de Comunicação.

Numa evidente violação de seu compromisso com os leitores, eles triaram partidariamente o depoimento de Amaury. Os elementos que poderiam comprometer Dilma foram divulgados com espalhafato, “merecendo” por quatro edições da Folha (20 a 23/10) o status de principal assunto do dia (incluindo três manchetes). Enquanto isso, esconderam-se as afirmações do jornalista que comprometiam Serra em dois episódios. O primeiro é o processo de privatizações do governo FHC, durante o qual membros do PSDB – além de Verônica Serra – teriam se envolvido em corrupção e/ou lavagem de dinheiro. O segundo, a disputa fratricida em que os tucanos se consumiram, para escolha de candidato à Presidência, com os dois lados (Serra e Aécio Neves) chegando a ponto de encomendar a preparação de dossiês sobre crimes cometidos pelo grupo adversário.

* * *

Para desfazer o cipoal em que a cobertura da mídia transformou o assunto, e compreendê-lo, é preciso retroceder à última semana de agosto. Uma apuração da Receita Federal verificou que, em 8 de outubro de 2009, servidores da Receita Federal no ABC Paulista haviam acessado declarações de Imposto de Renda de quatro integrantes do PSDB: o ex-diretor do Banco do Brasil (no governo FHC) e arrecadador de recursos do partido, Ricardo Sérgio de Oliveira; o ex-ministro das Comunicações no governo FHC, Luiz Carlos Mendonça de Barros; o vice-presidente do partido, Eduardo Jorge; e o empresário Gregório Marin Preciado, casado com uma prima-irmã de José Serra. Dias mais tarde, apurou-se que o mesmo sucedera com Verônica Serra, filha do candidato à Presidência.

O assunto dominou a mídia durante ao menos quinze dias. Foi destacado, em manchetes seguidas, por Veja, O Globo, Folha e Estado, além do JN. O acesso indevido a dados fiscais de milhões de contribuintes não é incomum. Inúmeras matérias, nos jornais e TVs, já destacaram a venda em massa de CDs com tais informações, em pontos como a Rua Santa Ifigênia, em São Paulo. No entanto, o fato foi tratado como espionagem política, quando envolveu os cinco tucanos.

Insinuou-se largamente que o vazamento fora produzido a mando de um “setor de inteligência” na campanha Dilma, que prepararia um “dossiê” sobre os tucanos. Veja falou em “enfraquecimento das instituições”, num texto intitulado “O Estado a serviço do Partido”, em edição cuja capa trazia a imagem de um polvo apoderando-se, com seus tentáculos, do brasão da República. Um editorial do Estado atribuiu a Lula a responsabilidade pelo incidente. A presença de Verônica acrescentou um componente sentimental ao caso: o aparelhamento da máquina pública, pelos adversários de Serra, ia a ponto de acossar a família do candidato…

* * *

A Polícia Federal abriu inquérito para apurar o caso. Ouviu 37 pessoas. Embora a investigação corra em sigilo de justiça, Eduardo Jorge – um dos que teve os dados fiscais vasculhados – valeu-se da condição de parte envolvida e requereu, por meio de liminar, acesso aos autos. É a fonte provável da retomada do tema, pela mídia. A partir de 20 de outubro, Folha e Jornal Nacional, depois secundados pelos outros jornais e por Veja, voltaram a tratar a quebra de sigilos como um assunto de relevância nacional.

Segundo a mídia, o jornalista Amaury Ribeiro é apontado no inquérito da PF como pivô do vazamento das informações fiscais dos tucanos. Amaury é um repórter experimentado, que passou pelos jornais de maior circulação do país e foi distinguido por três Prêmios Esso e quatro Vladimir Herzog. Nega que tenha encomendado a funcionários da Receita a consulta das declarações de Imposto de Renda dos tucanos. Admite que reúne, sobre o tema, um “dossiê”.

Porém, ao terem acesso a seu depoimento na PF, Folha e Jornal Nacional recolheram evidências que desmentem, por completo, a subordinação do trabalho de Amaury Ribeiro ao PT ou à campanha de Dilma. O jornalista premiado, que prepara um livro sobre as privatizações, relata, entre outros pontos, os seguintes:

1. Sua investigação teve início na virada da década passada, quando transitou entre a sucursal paulista de O Globo e a redação do Jornal do Brasil – e se interessou pela participação de Ricardo Sérgio do processo de privatizações.

2. Nessa época, teve acesso a uma primeira declaração de renda de Ricardo Sérgio (relativa a 1998), por meios totalmente legais. O documento constava dos autos de um processo movido pela Rhodia do Brasil contra a Calfat, de propriedade de Ricardo Sérgio.

3. Ao persistir na investigação, verificou, em 2003 – por meio de documentos públicos, obtidos pela CPI do Banestado – que Ricardo Sérgio movimentava “milhões de dólares” anualmente. Servia-se, para tanto, de rede de doleiros e operava inclusive em paraísos fiscais.

4. Chegou a publicar, já em 2003 (em IstoÉ), diversas matérias sobre esta movimentação. Foi processado por Ricardo Sérgio. Serviu-se do direito à “exceção da verdade” — que garante aos acusados de praticar calúnia o direito de demonstrar que suas alegações são verdadeiras. Ao fazê-lo, pôde requerer da CPI do Banestado novos documentos sobre movimentação de dinheiro no exterior, por seu antagonista.

5. O material recebido permitiu-lhe verificar que Gregório Marin Preciado (o marido da prima-irmã de José Serra), e outras pessoas de algum modo relacionadas ao processo de privatizações do governo FHC, também haviam feito ampla movimentação de recursos no exterior.

6. A partir de 2007, passou a trabalhar no Estado de Minas e Correio Braziliense (ambos do grupo Diários Associados). Nessa época, descobriu que um grupo clandestino de inteligência, espionava o governador Aécio Neves, a serviço de José Serra.

7. Suas fontes na “comunidade de informações” apuraram que este grupo, articulado pelo delegado da PF e deputado federal Marcelo Itagiba (PSDB-RJ) trabalhava para José Serra – que então disputava com Aécio a indicação para candidato do partido à Presidência.

8. Ao apurar as atividades deste grupo, descobriu que Verônica Serra e seu esposo possuíam empresas operando em paraísos fiscais. Utilizadas para lavar dinheiro, elas dividiam escritório, nas Ilhas Virgens, com companhias de Ricardo Sérgio.

9. Concluiu, a partir do conjunto de informações levantadas, que Ricardo Sérgio, dirigente do Banco do Brasil, participou da articulação dos consórcios privados que assumiram o controle do Sistema Telebrás. E tesoureiro do PSDB cobrou propina e executou, a partir de sua base nas Ilhas Virgens, internação ilegal de valores no Brasil.

Nada assegura que este elenco de afirmações seja verdadeiro. É certo, porém, que são de imensa gravidade e relevância. Tendo acesso privilegiado ao material, a Folha, o JN e as publicações que os seguiram ocultaram-no de seus leitores. Não tinham como objetivo apurar e informar. Queriam comprovar uma hipótese pré-concebida – a de que a quebra de sigilos demonstrava a prática, por parte do PT, de espionagem e aparelhamento do Estado. Por isso, pinçaram do depoimento de Amaury Ribeiro outro conjunto de informações, a saber:

10. Afastado de O Estado de Minas em função da doença e morte de seu pai, o jornalista foi sondado, em abril de 2010, pela Lanza Comunicações, que cuidava à época das comuicações, na pré-campanha de Dilma. Por saberem de sua relação com a “comunidade de informações” os responsáveis pela empresa pediam indicação de um profissional capaz de investigar suspeita de espionagem, na “Casa do Lago Sul”, usada para prestar serviços à candidatura.

11. Onézimo Graça, o profissional indicado por Amaury, apresentou um orçamento (R$ 180 mil), considerado muito elevado. O próprio Amaury descartou a possibilidade de trabalhar para a campanha de Dilma, diante do risco de “infiltração” de espiões.

12. Durante os dias em que manteve contato com a campanha petista, Amaury hospedou-se no apart-hotel de “Jorge” o responsável pela administração da “Casa do Lago Sul”. Neste período, o conteúdo de suas investigações sobre corrupção e lavagem de dinheiro ligadas às privatizações da era FHC foi copiado, de seu notebook, por Rui Falcão, integrante da campanha de Dilma. Envolvido numa disputa interna com a Lanza, Falcão entregou o material ao jornalista Policarpo Júnior, de Veja.

Enquanto sonegavam, por completo, o primeiro grupo de informações, o Jornal Nacional e a Folha davam ao segundo máximo destaque. Durante os anos 1990, a Folha orgulhava-se de um slogan: “De rabo preso com leitor”…


Este texto é a terceira parte do Dossiê GloboGate. Na mesma série:

1. A semana em que as elites perderam a noção
Como a velha mídia manipulou imagens e fatos, para tentar forçar a vitória de Serra. O papel da blogosfera na desmontagem da farsa e a necessidade de uma democratização radical das comunicações

2. A batalha de Campo Grande
Produzir um incidente grave, e atribuí-lo ao adversário, é uma das formas de virar uma eleição quase perdida. Serra e a Globo parecem ter tentado esta estratégia, em 20 de outubro. Foram derrotados por milhões de internautas – e pelo Twitter.

extraído do sítio Outras Palavras do Antonio Martins (Le Monde Diplomatique)

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