segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Quem eles pensam que enganam?

Sobre a retórica política dos EUA

5/9/2010, Robert Grenier, Al-Jazeera, Qatar - Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Robert Grenier foi diretor da base da CIA em Islamabad, Pakistan, de 1999 a 2002. Também dirigiu o centro de contraterrorismo da CIA.

A mais recente ‘análise’ sobre o erroneamente chamado ‘processo de paz’ Israel-palestinos, da lavra de Martin Indyk, embaixador dos EUA em Israel, publicada em coluna do New York Times deixou-me, simplesmente, boquiaberto.


Vistas pela rama, as opiniões de Martin parecem não passar de raciocínio pedestre. Acompanhando o que se lê em vários jornais, o ex-testa de ferro oficial do poderoso AIPAC, tanque blindado do lobby norte-americano pró-Israel (e há quem diga “pró-Likud”) lista quatro motivos pelos quais há motivos para otimismo quanto às perspectivas das conversações diretas de paz, às quais o presidente Mahmoud Abbas da Autoridade Palestina foi afinal coagido a participar.


Raciocínio vicioso


Primeiro, diz Martin, a violência terrorista contra Israel diminuiu consideravelmente. Segundo, a atividade de construção nos “assentamentos” está “consideravelmente mais lenta”. Terceiro, a opinião pública, dos dois lados, “apóia uma solução de dois estados”. E, finalmente, depois de quase duas décadas de ir e vir nas negociações entre israelenses e palestinos, diz ele, já se conhecem as linhas gerais de uma solução: basta ajudar os dois lados a ver com clareza – e as conversações agora diretas conseguirão, pelo menos, testar os dois lados.


Até aí, aparentemente, tudo muito razoável. Se essa análise aparecesse em prova de redação de ginásio, mereceria no máximo uma nota 6, e Martin estaria aprovado para o semestre seguinte. O problema é que não se trata de aluno de ginásio. Quem aí se manifesta é Martin Indyk, ex-alto funcionário do governo dos EUA e destacado membro da gangue do processo de paz dos EUA, responsáveis, todos eles, pelo processo de paz no Oriente médio durante um período – os anos 1990s – em que ainda teria sido possível alcançar alguma paz. O fracasso daquela gangue não foi resultado, só, da incompetência; foi resultado também da quantidade astronômica de mentiras: jamais, em tempo algum, alguma paz foi objetivo que interessasse os EUA (nem, por ironia, algum dia interessou a Israel). O único objetivo daquela gangue sempre foi satisfazer os líderes israelenses e seus apoiadores lacaios, nos EUA.


Portanto, diferente de qualquer ginasiano tímido, Martin sabe mais do que escreve. O fato de que ainda repita essas bobagens sobre o processo de paz obriga, outra vez, a considerar seus motivos ocultos. Rápido exame do que Martin tem dito e feito ajuda a explicar por que ele e seus camaradas – os Dennis Rosses, os Aaron Millers, os Dan Kurtzers e alguns outros – conseguiram outra vez, sabe-se lá por quais vias, não só abortar qualquer possibilidade de alguma paz justa no Oriente Médio mas, além disso, por sob grave risco, no mesmo processo, a segurança de longo prazo tanto de Israel quanto dos EUA.


A semântica dos “assentamentos”


Comecemos pelos ‘assentamentos’. Não há tema que mais favoreça a manipulação e as mentiras, e Martin não nos poupa nem de uma nem das outras. Minha favorita, dessa vez, é a frase de Indyk, afirmação categórica, de que graças à (também erradamente chamada) “moratória” israelense no processo de construir “assentamentos” (não são ‘assentamentos’; são colônias exclusivas para judeus e construídas para lá ficar), “praticamente nenhuma nova casa começou a ser construída na Cisjordânia, como confirmado pelo “Central Bureau of Statistics” de Israel no primeiro trimestre de 2010.” Santo Deus! Não há mais completo factóide, do que esse!


Claro. Quem conte as casas cuja construção foi iniciada nesse período na Cisjordânia, se for autoridade de Israel, deixará fora da contagem as casas construídas e em construção nas áreas que Israel anexou unilateral e ilegalmente, não é? Claro que sim. E, isso, sem considerar que ninguém sabe o que seja “começar a construir uma casa” pelos critérios do “Central Bureau of Statistics” de Israel. Mas, mesmo sem considerar esse detalhe, o que haveria de tão mágico, no primeiro trimestre de 2010? Pelos meus cálculos, estamos no terceiro trimestre de 2010; que motivo haveria para ignorar o que aconteceu e continua a acontecer lá, desde março?!


Mas há mais. Como Martin escreve, sôfrego, “praticamente nenhum” – formulação chocantemente imprecisa, na pena de alguém com tão longa prática na fina arte da gramática – dos novos projetos de moradia (nada de “iniciar a construção de uma casa”! Agora, já são “novos projetos” inteiros!) desde... Bem, desde, é claro o imenso imbróglio diplomático provocado pelo anúncio, por Israel, de que começava a construir mais 1.600 novas unidades residenciais em Jerusalém Leste, durante visita de Joe Biden a Israel, acontecida... Vejam só! No primeiro trimestre desse ano, não foi mesmo?! Muito provavelmente, a construção dessas novas unidades, sim, já começou.


“Queda nas demolições”


Por fim, somos informados de que a demolição de casas de palestinos em Jerusalém Leste “também caiu”, em comparação a anos recentes. É como elogiar alguém por espancar a mulher ‘só’ duas vezes por semana.


E assim, Martin obra para nos convencer de que o atual momento é muito propício para ‘pazes’.


Pelo menos, Martin faz-nos a gentileza de admitir que a “moratória”-só-no-nome, e que expirará dia 26 de setembro, “parece que não será estendida” (o que é dizer menos, e mais mal, do se nada dissesse) pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, e é claro que Mahmoud Abbas declarou que se retirará das negociações no momento em que a tal ‘moratória’ for suspensa. Martin, por fim, assume um compromisso: queira Deus que Netanyahu aceite, talvez, manter as construções em ritmo de “crescimento modesto” e só nos ‘assentamentos’ que, “muito provavelmente serão integrados a Israel, no acordo final”.


Aí está. Esse o objetivo dessas ‘negociações’, não é? Isso é tudo o que a Casa Branca de Obama quer obter dessas negociações, as quais, de quebra, criarão uma ilusão de progresso –progresso que todos esperam, dada as extravagantes aspirações do presidente Obama de ser visto como o pacificador do Oriente Médio.


Um pequeno incômodo necessário


Aos israelenses, será cobrado um preço por terem tido de participar desse teatrinho. O preço? Serão autorizados a continuar construindo; assim, consolidarão a colonização da Cisjordânia, projeto concebido e iniciado por Ariel Sharon em 2005. Netanyahu não deixaria que alguma negociação impedisse a caminhada rumo àquele objetivo; as negociações são um pequeno incômodo necessário, que ele terá de suportar, enquanto continua marchando. Essa negociata foi arquitetada e está sendo apadrinhada pelo governo dos EUA.


Os palestinos sabem de tudo isso, o que explica que se tenham recusado a participar dessas negociações. E Martin também sabe, como todos sabemos.


Indyk acerta ao dizer que a opinião pública dos dois lados apóia uma solução de dois estados – o que torna a situação atual ainda mais trágica. Enquanto Martin gostaria de poder acreditar que Netanyahu estaria motivado a trabalhar contra o sentimento contrário aos dois estados de seu próprio Partido Likud, Martin sabe que Netanyahu faz exatamente o contrário, diga o que disser. Nas raras ocasiões em que Netanyahu consegue obrigar-se a pronunciar a expressão “estado palestino”, podem-se ouvir as engrenagens de seu cérebro que o consolam: nada jamais haverá além de uma fieira de bantustões desmilitarizados e só nas terras que Israel optou por não anexar.


E, evidentemente, nada disso tem qualquer coisa a ver com Gaza, que continuará como está hoje: um vasto campo de concentração israelense, de prisioneiros palestinos.


Martin Indyk quer nos fazer crer que a única coisa que impede que se faça uma paz viável entre israelenses e palestinos – cujas linhas gerais, sim, ele tem razão, todos conhecem – seria que “os dois lados” manifestassem “desejo político” de chegar àquela paz.


Ora, Binyamin Netanyahu é homem ao qual faltam muitas coisas, mas “desejo político”, não, não lhe falta. A ideia de que Netanyahu algum dia venha a fazer alguma concessão que implique destruir grande número de colônias na Cisjordânia ou que cederá aos palestinos a soberania sobre Jerusalém Leste é simplesmente ridícula. Netanyahu já disse que jamais fará essas concessões. Por que, agora, faria diferente? Para agradar o presidente Obama? Não. Não falta “desejo político” a Netanyahu. O problema é que o “desejo político” de Netanyahu nada tem a ver com o tipo de acordo que outras negociações de paz sugeriam que seriam marginalmente aceitas pelos palestinos.


Diplomacia de duas caras


O que nos traz de volta a Martin Indyk. Ninguém, melhor do que ele, entende o que se lê aqui, acima. Conhece os pensamentos e intenções de Netanyahu muito mais e melhor do que eu jamais conhecerei. Sabe absoluta e completamente sem dúvida alguma que as “conversações diretas” de Obama darão em nada – o que explica sua infeliz coda final, de que deveríamos “suspender a descrença” e “comemorar que a diplomacia dos EUA tenha criado condições para testar [os atuais líderes israelenses e palestinos].” É. Serão testados. E todos já sabemos o resultado do teste.


A única explicação possível para tantas mentiras, além da vaidade de ler-se no jornal, é que Martin Indyk continua a fazer a mesma diplomacia que fez e comandou nos anos do governo Clinton – diplomacia de manter pressão sobre os israelenses, ao mesmo tempo em que os deixam fazer o que bem entendam. Apesar de, sem dúvida, ter feito pequenas adaptações ao longo dos anos – passando, do lobbyismo descarado a favor de Israel, para o aparelhamento da política exterior dos anos Clinton –, ele sempre assumiu que os motivos básicos não mudaram. Nesses anos, Indyk conheceu gente, dos quais o lastimável Dennis Ross é o mais destacado e o mais mal intencionado. Aaron Miller, outro membro da equipe do Departamento de Estado para ‘processos de paz’, teve, pelo menos, a elegância de dizer, depois de aposentar-se, que ele e seus colegas viam sua função como a de “advogados de Israel”.


Para tantos de nós que assistimos ao processo naqueles anos, bem de perto, era óbvio que Ross, Indyk e os outros viam seu trabalho como tarefa em duas etapas: descobrir o que os israelenses queriam e ajudá-los a chegar lá.


Nisso, jamais conseguiram fazer ao mundo o mal que fizeram a eles mesmos. Afinal, todos jamais passaram de meros apparatchiks – vizires servindo a vários governos, um mais vicioso que o outro, dos quais o atual é só o mais recente.


Mas para os que ao longo de toda a carreira tentamos proteger e defender os EUA que sempre, sem parar um dia, foi ameaçado sistematicamente por gente como Martin Indyk, essa mais recente página de cinismo explícito no New York Times é dura de engolir. Não sei quem Martin pensa que engana, mas sei que não nos engana.


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Who does he think he is fooling?