sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O que pensa e propõe o Hamás (2/3)

10/9/2010, Khaled Meshall (entrevista), Al Sabeel, Jordânia

Traduzido por Baby Siqueira Abrão, Blog Parallaksis (2)

Esse é o segundo, de uma série de três artigos - o artigo 1 encontra-se em: O que pensa e propõe o Hamás (1/3)

Traduzido por Baby Siqueira Abrão, Blog Parallaksis (1)


Esta é a mais recente entrevista com Khaled Mesh'al, que em 1996 tornou-se presidente do Movimento de Resistência Islâmica (Hamás). O assassinato do líder Abdul 'Aziz Rantisi, em 2004, transformou Mesh'al no líder global do movimento.


Nesta entrevista ele estabelece a direção política do Hamás em relação a várias questões críticas: as negociações com Israel, as relações internacionais, os judeus, os cristãos, as mulheres. A entrevista, que durou muitas horas, foi muito bem recebida no mundo árabe, e é considerada uma indicação clara das posições que o Hamás defende hoje, em especial no que diz respeito às atitudes em relação a Israel. Nas palavras de Mesh'al, trata-se de uma peça importante para articular as perspectivas dos líderes do movimento, crítica para os observadores do Oriente Médio e para os decisores políticos que lidam com a região. O Afro-Middle East Center (AMEC) traduziu esta entrevista para o inglês a fim de torná-la acessível a um público mais amplo e de permitir uma compreensão maior -- em particular no mundo que fala Inglês -- das perspectivas políticas de um movimento que se transformou numa das peças mais importantes no xadrez do Oriente Médio.


Sobre as negociações de paz

Você rejeita, por princípio, as negociações com o inimigo? Se elas não podem ser realizadas com o inimigo, é possível fazê-las com um amigo? O Hamás rejeita as negociações por uma questão de princípios ou recusa sua forma, seu comportamento e seus resultados?


Sobre o reconhecimento de Israel

A questão do reconhecimento da entidade sionista suscita muito debate. Fala-se também do reconhecimento legal, em contraste com o reconhecimento realista ou pragmático. Qual é a posição do Hamás sobre esta questão?

Nossa posição sobre o reconhecimento da legalidade da ocupação é clara e constante. Não a escondemos nem a disfarçamos. Reconhecer Israel foi uma condição estabelecida pela comunidade internacional para aceitar o Hamás, e assim essa questão tornou-se um obstáculo em nosso caminho. Mas nós não nos importamos. Most ramos determinação no enfrentamento desse desafio. O reconhecimento significa legitimar a ocupação e legitimar a agressão de Israel, as colônias, a judaização [da Palestina], os assassinatos, as prisões e outros crimes e atrocidades cometidos contra nosso povo e contra nossa terra. Isso é inaceitável, de acordo com o direito internacional e com os valores humanos, para não mencionar a nossa religião.


É inaceitável legitimar a ocupação e o roubo de terras. A ocupação é um crime, o roubo é crime, e não devem ser legitimados sob nenhuma circunstância. Esses conceitos são incontroversos no entendimento humano comum, e assim é também em relação à vítima palestina, cuja terra foi usurpada. Essa é uma questão ligada à existência humana, e que contrasta com o reconhecimento da legitimidade da ocupação e da usurpação, para não mencionar os sentimentos patriótico e religioso, a filiação cultural e a presença histórica que nos ligam a esta terra.


Outros têm caído nessa armadilha em consequência de sua ineficácia e de sua submissão a pressões externas. Pensam que se curvar a essas condições e às pressões pode tornar mais fácil, para eles, o avanço de sua agenda política. Entretanto, foi demonstrado, na prática, que eles pagaram um preço exorbitante por uma ilusão. Essas pessoas erraram no que diz respeito a sua lógica de interesses e a sua lógica de princípios.


Rejeitamos o reconhecimento em ambos os sentidos: legal e pragmático. Há uma diferença entre dizer que há um inimigo chamado Israel, por um lado, e reconhecer sua legitimidade, por outro lado. O primeiro aspecto [dizer que há um inimigo chamado Israel] não significa, realmente, reconhecimento. Em suma, nós nos recusamos a reconhecer a legitimidade de Israel porque nós nos recusamos a reconhecer a legitimidade da ocupação e do roubo de terras. Para nós, esse princípio é claro e definitivo.


Você não está surpreso com a insistência internacional e de Israel em relação ao reconhecimento? Esse não seria, de certa maneira, um sinal de fraqueza? Pois parece que Israel questiona a própria existência, e então exige que os outros reconheçam a legitimidade dessa existência.

Sem dúvida, o inimigo está preocupado com o futuro de sua entidade, especialmente à luz dos últimos desenvolvimentos. Sua psicologia é a de um ladrão, de um criminoso que, no fim das contas, sente-se como um fora da lei sem legitimidade, não importa quão forte possa se tornar. A demanda por reconhecimento é, sim, um sinal de fraqueza, a expressão de um complexo de inferioridade, uma falta de confiança no futuro da entidade, a sensação de que é ilegítima e, além disso, rejeitada pelos povos da região como um corpo estranho. A mera presença constante do povo palestino é um exemplo prático da rejeição à entidade sionista.


No entanto, há outra dimensão, que é o sentimento de superioridade. Esta é a lógica com que as nações ocidentais tratam os países do terceiro mundo. Os sionistas adotam a mesma lógica, com base na supremacia militar, e sentem que são a parte que tem o direito de impor condições aos outros, inclusive ditar condições a qualquer negociação.


Algumas partes árabes e palestinas, infelizmente, responderam a essa lógica. Esse desequilíbrio é inaceitável. Em nossos diálogos com as delegações estrangeiras, nós as ouvimos falar de modo constante nas condições do Quarteto [EUA, Canadá, União Europeia e Israel]; alguns introduzem alterações nas condições, para que as aceitemos com mais facilidade. Nós recusamos todas as condições, por princípio, e nos recusamos a discuti-las, mesmo no contexto de busca de fórmulas de revisão. Nós rejeitamos o princípio [da existência] de condições, pois isso pressupõe que há dois níveis de seres humanos, que uma parte pode dominar a outra, que uma parte está no nível superior e outra, no inferior. Nossa humanidade, nossa dignidade e nosso respeito próprio estabelecem que estamos em condições de igualdade com os demais, mesmo que estes sejam militarmente mais fortes; portanto, nós nos recusamos a ser tratados com condições prévias.


Infelizmente, um dos erros que faz que essa abordagem persista é o fato de que algumas pessoas aceitaram essas condições, incluindo o reconhecimento [da legitimidade da existência de Israel]. Elas cometeram outro erro ao não trocar o reconhecimento de Israel pelo reconhecimento dos direitos dos palestinos; preferiram, em vez disso, ser, elas mesmas, reconhecidas. Trata-se de uma falha importante que se somou ao erro original, ou seja, o reconhecimento! É um absurdo reconhecer Israel para que ela reconheça a Organização de Libertação da Palestina ou outro movimento em vez de reconhecer o povo palestino, o Estado palestino, os direitos palestinos. Isso implica substituir o interesse público pelos interesses pessoa is, substituir o grande objetivo nacional por um pequeno objetivo partidário. Ao afirmar isso, enfatizamos nossa rejeição ao reconhecimento, independentemente do preço a pagar.


Portanto, em nossas conversas com as delegações [ocidentais, que lhes pedem para reconhecer Israel], dizemos-lhes: "Apesar de ansiosos para nos comunicar com vocês e de nos abrir para o mundo, não pedimos nem procuramos o reconhecimento ocidental do Hamás. Isso não nos interessa. Nossa legitimidade advém do povo palestino, das urnas, da democracia palestina, da legitimidade da luta, do sacrifício e da resistência, de nossas profundas raízes árabes e islâmicas. Nós não buscamos a legitimidade concedida pelo estrangeiro.


Buscamos, isso sim, alcançar e obter o reconhecimento dos direitos dos palestinos e do direito de nosso povo à liberdade, bem como a libertação da ocupação e o direito à autodeterminação. E isso não se dará em troca de reconhecimento, porque o reconhecimento é, em última instância, o reconhecimento da legitimidade da ocupação, da agressão e do roubo das terras.


Em sua opinião, por que a comunidade internacional e os israelenses rejeitam a trégua de longo prazo proposta pelo Hamás?

Essa rejeição, por parte da entidade sionista, do governo dos EUA e de outras partes internacionais deve-se a vários motivos.

O primeiro: a lógica do poder, a superioridade e a hegemonia das partes. Elas acreditam que seu poder superior lhes permite impor o que quiserem a nós, e nos consideram, a árabes e palestinos, a parte vencida, que não tem escolha senão assinar o instrumento de rendição -- do mesmo modo como Alemanha e Japão fizeram no rescaldo da II Guerra Mundial -- e que não pode oferecer soluções e ideias, como a trégua.


O segundo motivo: eles veem partes árabes e palestinas fazendo ofertas mais atraentes. Então, como reagem a uma oferta de trégua quando outros oferecem o reconhecimento de Israel em troca de uma solução baseada nas fronteiras de 1967, com disposição para negociar os detalhes da solução, a saber: as fronteiras, Jerusalém e o direito de retorno [dos milhões de refugiados palestinos e suas famílias]?


Terceiro motivo: a experiência dos estadunidenses, dos sionistas e dos demais com outros partidos da região levam-nos a concluir que mais pressão vai nos conduzir a um estado do desespero, como aconteceu com outros; afinal, eles tentaram a política da pressão e da chantagem com outros e essa política funcionou. Isso os motiva a dizer: "Vamos tentar a mesma coisa com o Hamás, para que ele se submeta, como os outros fizeram". Acrescente a isso o fato de que alguns árabes e palestinos -- lamentavelmente -- aconselham-nos: "Cerquem o Hamás financeira e politicamente e façam incitações contra ele; não o aceitem diretamente, mantenham as suas condições e não se apressem. O Hamás acabará por sucumbir!"


Esses motivos, e talvez outros, os levou a rejeitar nossa oferta de trégua. Em nossas conversas com as delegações ocidentais, dizemos: "Sim, as posições dos outros são mais fáceis, e a nossa é mais difícil, mas a nossa vantagem é que, quando fazemos uma oferta ou assumimos uma posição, nós nos esforçamos para garantir sua aplicabilidade aqui e seu potencial para conquistar a confiança do povo palestino e do público árabe e islâmico; e isso somente quando essa posição não é contrária aos interesses nacionais, aos direitos e aos interesses do povo". Quanto às posições dos outros, na arena palestina, são fáceis mas lhes falta a aprovação da maioria do povo palestino, de suas forças nacionais e de su as elites intelectuais. Qual é o valor prático dessas posições, o valor de chegar a acordos e encontrar soluções com algumas lideranças que foram rejeitadas pela maioria do povo? Os acordos de Oslo foram impostos, no passado, e falharam porque eram injustos e não satisfaziam as aspirações de nosso povo. Portanto, permaneceu alheio à realidade palestina e árabe.


Estamos conscientes de que eles serão forçados a finalmente lidar com os objetivos do Hamás e com os objetivos das forças e dos líderes comprometidos com os interesses nacionais. Nós lhes dizemos: "Se vocês pensam que são capazes de obter êxito na região por meio de outros regimes, tentem e vão chegar a um beco sem saída".


Pode ser tranquilo, para as grandes potências, dispor de soluções fáceis com certos dirigentes e governantes, sem considerar algo muito importante: se essas soluções são convincentes e satisfatórias para o povo. Essas potências ignoram o fato de que a reconciliação com os líderes e os governos é temporária e de curta duração, e não cria estabilidade na região, não importa o grau de pressão e de opressão exercida contra o povo. No entanto, o sucesso de qualquer empresa é obtido apenas quando as pessoas estão convencidas e acreditam que ela seja justa e satisfatória, mesmo que de maneira temporária. Algumas pessoas, no Ocidente, começam a perceber a importância dessa perspectiva e, conseqüentemente, o desenvolvimento de suas posições -- ainda que lento -- na direção de negociações com o Hamás. Ainda há obstáculos no esforço de traduzir esse desenvolvimento limitado em etapas reais e sérias. Nós, por nossa vez, não temos pressa porque o que nos importa não é nosso papel, mas sim nosso compromisso com os direitos e os interesses de nosso povo.


Sobre os judeus

A resistência do Hamás se dá contra os sionistas como judeus ou como ocupantes?

[A resposta de Mesh'al estará na Parte 3/3]

[Continua]


Esta entrevista, em inglês, pode ser lida em: Mishaal Explains Hamas’s Strategy in Dealing with the Israeli Occupation