quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O que pensa e propõe o Hamás (1/3)

9/9/2010, Khaled Meshall (entrevista), Al Sabeel, Jordânia
Traduzido por Baby Siqueira Abrão, Blog Parallaksis e Parallaksis Mundo



[A foto mostra um tanque israelense saindo de uma rua palestina, onde esmagou uma demonstração de protesto. Os soldados israelenses atiraram contra os manifestantes, ferindo gravemente 14 pessoas. Então Faris Odeh, de 13 anos, investiu contra o veículo, atirando pedras nele. Faris morreu mais tarde, durante outro incidente.]


O que é o Hamás? O que pensam e propõem seus líderes? Qual sua avaliação sobre as atuais negociações de paz entre Abbas e Netanyhau? Como se posiciona em relação à política, a Israel, ao papel da mulher?


Em entrevista concedida em julho deste ano ao jornal jordaniano Al Sabeel, Khaled Mesh'al, atual líder do movimento, falou sobre as principais posições do Hamás hoje, 23 anos depois de sua fundação, ocorrida logo depois da Primeira Intifada (1987).


O grupo, sediado em Gaza, ocupou, entre os palestinos, o lugar que era da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), de Yasser Arafat, mergulhada em acusações de corrupção e de descaso para com a população árabe. Atuando principalmente nas áreas da educação e da saúde, oferecendo apoio e assistência efetivos aos palestinos, o Hamás -- sigla de Harakat Al-Muqawama al-Islamia (Movimento de Resistência Islâmica) -- ganhou a confiança da maioria palestina, o que se traduziu nas urnas, nas eleições de 2006, vencida pelo movimento e considerada "honesta, limpa, transparente" pelos observadores internacionais que a acompanharam.


Essa vitória foi o estopim do bloqueio de Israel a Gaza. Com o velho e gasto argumento de "preservar a segurança nacional", os sionistas transformaram a vida dos palestinos num pesadelo muito pior do que já era.


A entrevista, em que Mesh'al também se defende das acusações de "terrorismo", mostrando com clareza as diferenças entre "resistência" e "terror", foi traduzida para o português por mim. Como é extensa, será dividida em várias partes. Hoje publicamos as reflexões do líder do Hamás sobre as atuais negociações de paz.


KHALED MESH'AL ESTABELECE NOVA DIREÇÃO POLÍTICA DO HAMAS – 1


Esta é a mais recente entrevista com Khaled Mesh'al, que em 1996 tornou-se presidente do Movimento de Resistência Islâmica (Hamás). O assassinato do líder Abdul 'Aziz Rantisi, em 2004, transformou Mesh'al no líder global do movimento.


Nesta entrevista ele estabelece a direção política do Hamás em relação a várias questões críticas: as negociações com Israel, as relações internacionais, os judeus, os cristãos, as mulheres. A entrevista, que durou muitas horas, foi muito bem recebida no mundo árabe, e é considerada uma indicação clara das posições que o Hamás defende hoje, em especial no que diz respeito às atitudes em relação a Israel. Nas palavras de Mesh'al, trata-se de uma peça importante para articular as perspectivas dos líderes do movimento, crítica para os observadores do Oriente Médio e para os decisores políticos que lidam com a região. O Afro-Middle East Center (AMEC) traduziu esta entrevista para o inglês a fim de torná-la acessível a um público mais amplo e de permitir uma compreensão maior -- em particular no mundo que fala Inglês -- das perspectivas políticas de um movimento que se transformou numa das peças mais importantes no xadrez do Oriente Médio.


As negociações de paz


Al Sabeel: Você rejeita, por princípio, as negociações com o inimigo? Se elas não podem ser realizadas com o inimigo, é possível fazê-las com um amigo? O Hamás rejeita as negociações por uma questão de princípios ou recusa sua forma, seu comportamento e seus resultados?


Este é, definitivamente, um assunto espinhoso e delicado, e muitas pessoas preferem evitar discussões sobre ele. Tendem a não tomar uma posição clara por medo de reações negativas ou de más interpretações. A natureza sensível e crítica desse problema é agravada pelas sombras escuras que são lançadas sobre ele, resultado das experiências amargas das negociações palestino-israelenses e árabes-israelenses. As pessoas, influenciadas por essas experiências, são extremamente sensíveis à ideia "negociação", particularmente no que diz respeito ao pensamento e ao espírito coletivo da nação. Existe hoje, em muitos lugares, uma aversão ao conceito de "negociação". Isso é perfeitamente compreensível e natural, mas não impede a abordagem criteriosa do problema, para definir, com a ajuda de Deus, cada detalhe desse contexto.


É indiscutível que não se rejeita a negociação com o inimigo, tanto no aspecto legal como no racional. Existem alguns estágios, durante um conflito, em que as negociações são necessárias e tornam-se necessárias. Tanto do ponto de vista racional como no da lógica jurídica, as negociações são aceitáveis e legítimas como meio e instrumento, em certos momentos, e rejeitadas e proibidas em outros. Ou seja, não é um recurso rejeitado de per si nem é rejeitado o tempo todo.


Na história islâmica, na época do Profeta [Muhammad, fundador do Islã] (que a paz seja sobre Ele), e em épocas posteriores -- como na de Salahuddin [Saladino] -- foram feitas negociações com o inimigo, mas dentro de um quadro claro e de uma filosofia específica, dentro de um contexto, de uma visão, com regras e regulamentos. Isso contrasta com a infeliz abordagem dos profissionais da negociação, que a consideram um modo de vida, a única opção estratégica, a serviço da qual todas as outras opções são descartadas.


"Se eles se inclinam à paz, incline-se [você também para a paz], e confie em Deus" (do Corão)


Al Sabeel: Se a resistência, honrada e respeitada como é, é um meio e não um fim, faz sentido fazer das negociações um fim, uma opção única e uma abordagem constante em vez de considerá-la um recurso e uma tática à qual recorrer quando necessário e quando o contexto exige?


No Corão, o conceito é claro quando Deus Todo-poderoso diz: "Se eles se inclinam à paz, incline-se (você também para a paz), e confie em Deus". Isso significa que para nós, como defensores de uma causa justa, a negociação é aceitável, razoável e lógica quando o inimigo vê-se levado a recorrer a ela, quando vem até nós pronto para a negociação, para pagar seu preço, para responder às nossas demandas. No entanto, se o inimigo a procura de maneira desesperada e a considera nossa única opção, então seremos os únicos a pagar o preço. Aqueles que são forçados a negociar é que costumam pagar o preço. Deus Todo-poderoso diz em outra passagem: "Não enfraqueça nem apele para a paz quando estiver em desvantagem".


Voltemos para o primeiro verso: "Se eles se inclinam à paz, incline-se (você também para a paz), e confie em Deus". Antes desse parágrafo, há outra mensagem de Deus Todo-poderoso: "Prepare para eles o poder de que você for capaz, incluindo cavalos de guerra para amedrontar o inimigo de Allah e seu inimigo". O que isso significa? Significa que a posse do poder e de seus meios é o que mobiliza o inimigo e o obriga à paz, e que a inclinação do inimigo à paz e à negociação é o resultado da jihad, a resistência e a posse do poder. Aqueles que acreditam em negociação sem resistência e sem as cartas do poder em mãos colocam-se praticamente na posição de rendição.

Na ciência da estratégia e da gestão de conflitos, a negociação é um prolongamento da guerra, um modo de gestão da guerra. Aquilo que você obtém sentando-se à mesa para negociar é resultado de sua condição no campo, consequência do equilíbrio de poder no campo. Se você for derrotado em campo, decerto será derrotado também nas negociações. Assim como a guerra exige um equilíbrio de poder, a negociação e a paz também o exigem. A paz não pode ser feita quando uma das partes é poderosa e a outra, fraca demais; caso contrário, será rendição. Os Estados Unidos não fizeram a paz com o Japão e a Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial. Em vez disso, impuseram a esses países a rendição, um pacto de obediência e de submissão.


Em suma, a paz é feita pelos poderosos e não pelos fracos; as negociações podem servir aos poderosos, mas não aos mais fracos.


A situação é diferente em relação ao conflito com a ocupação israelense. Trata-se de um corpo estranho na região, que veio de fora e que se impôs sobre uma terra e sobre um povo, que expulsou as pessoas para longe de suas terras e que as substituiu por uma diáspora de imigrantes de todo o mundo. Esta é, portanto, uma situação complexa que deve ser tratada com delicadeza.


Quando as condições objetivas e as exigências para a negociação estiverem disponíveis -- em especial a existência de uma situação na qual estejam presentes uma estabilidade suficiente e um relativo equilíbrio --, quando houver comprovada necessidade para isso, no momento apropriado -- sem pressa e sem demora -- então a negociação pode ser uma das opções à qual recorreremos como um mecanismo, um meio e uma ferramenta, não como um objetivo ou um fim, não como uma condição permanente ou uma opção estratégica. A negociação é um instrumento tático, e, como a guerra, não é uma condição permanente, além de ter exigências e condições próprias.


Com esta visão clara da negociação, e quando ela é realizada com grande cautela e sob regras rígidas, na hora certa, será aceitável e útil no contexto da gestão de conflitos. Caso contrário levará apenas a rendição e submissão à hegemonia e às condições do inimigo, e resultará no abandono de direitos, numa queda contínua no nível das demandas e das posições políticas.


Infelizmente, as condições árabes e palestinas em relação a esse problema são sobretudo muito ruins. É uma posição vulnerável, sem barganha, sem suporte, sem manobra, sem margem para discussões. As fileiras palestinas estão totalmente expostas, e assim vão para a paz, declarando-a sua única opção estratégica. Quando o inimigo está ciente de que você não tem opção senão negociar, e você não fala de outro assunto a não ser da paz, e não tem outra opção, o que vai obrigar o inimigo a lhe fazer concessões?


O que há para obrigar Olmert ou Netanyahu a conceder algo aos palestinos?


Os negociadores palestinos dizem: "A negociação é a opção, o caminho e o único plano". Eles coordenam a segurança com o inimigo e aplicam livremente o "Mapa do Caminho" e seus requisitos de segurança, e Israel nada oferece em troca. O que há para obrigar Olmert ou Netanyahu a conceder algo aos palestinos?


A negociação está fora de contexto objetivo, no caso palestino. Não passa, do ponto de vista da lógica política, de falta de resistência, sem base no necessário equilíbrio de poder. Os vietnamitas, por exemplo, negociaram com os estadunidenses quando estes últimos já recuavam; portanto as negociações foram úteis para virar a última página da ocupação e da agressão dos EUA. Você é bem-sucedido na negociação e na imposição de suas condições ao inimigo dependendo do número das cartas de poder que tem na mão.


Por isso, para que a negociação não seja um processo arriscado e oneroso, é preciso deixar clara para o inimigo -- não apenas em palavras, mas também em ações -- a mensagem de que você está aberto a todas as opções. O negociador não pode ter êxito sem fundamentar sua posição sobre a multiplicidade de opções. Isso significa que, na medida em que você está pronto para a negociação, também está pronto e capacitado para a guerra. Se a negociação chegar a um impasse, você deve estar preparado para a guerra, para o conflito ou para a resistência; caso contrário, a negociação será inútil. Devemos lembrar que as negociações, durante as guerras de antigamente, eram com frequência conduzidas no campo de batalha, e os negociadores ou chegavam a uma solução, ou davam continuidade à guerra.


A negociação é uma ferramenta e uma tática a serviço de uma estratégia, e não a própria estratégia. Não é um substituto de uma estratégia de resistência e de confronto com a ocupação.


A negociação deve ser baseada na unidade nacional. Se uma das partes vê benefício em um determinado passo para a negociação, e prossegue nessa decisão sozinha, sem consultar o povo, está se colocando numa situação difícil e concederá ao inimigo uma oportunidade que certamente será usada contra ela [parte]. Isso também pode levar os negociadores a fazer concessões significativas, por medo de que mais tarde sejam forçados a reconhecer o fracasso de sua opção pela negociação. Portanto, eles sobrepõem seus próprios interesses aos interesses nacionais, a fim de não ser expostos diante de seu povo e dos outros.


A negociação tem seus espaços e domínios específicos. Não é uma opção absoluta em todos os casos. Há questões que não devem ser negociadas, como as críticas constantes. A negociação é um mecanismo e uma tática dentro de limites e domínios específicos; ninguém, em seu perfeito juízo, negociaria tudo, especialmente seus princípios. No comércio, a negociação se dá quase sempre sobre os lucros, não sobre os ativos das empresas. Infelizmente, a experiência presente, em particular no que diz respeito às negociações com os palestinos, mostra que todas essas regras foram abandonadas.


Digo, com toda honestidade e coragem: a negociação não está absolutamente proibida ou fora de questão, seja do ponto de vista jurídico, seja do aspecto político, tendo em vista as experiências da nação e da humanidade, ou as práticas dos movimentos de resistência e das revoluções ao longo da história. No entanto, deve ser objeto de equacionamentos, regulamentos, cálculos, circunstâncias, contextos e gestão apropriados, pois sem isso torna-se uma ferramenta negativa e destrutiva.


Em relação ao caso palestino, afirmamos que as negociações com Israel, hoje, são uma escolha errada. A proposta foi apresentada ao Hamás, para que negociássemos diretamente com Israel, mas nós recusamos. Alguns líderes do Hamás receberam a proposta de encontrar-se com vários líderes israelenses, alguns deles no poder, como [o vice-premiê israelense e líder do Partido Shas] Eli Yishai, e outros pertencentes ao campo da paz. O Hamás rejeitou as ofertas.


As negociações hoje -- sob o atual equilíbrio de poder – estão a serviço do inimigo e não servem aos palestinos. O conflito não se desenvolveu a ponto de forçar o inimigo sionista a recorrer à negociação; ele se recusa, hoje, a retirar-se das terras, e não reconhece os direitos dos palestinos. A negociação em tais condições é uma espécie de aposta infrutífera.


Israel é o único beneficiário das negociações.


À luz da nossa vulnerabilidade e do desequilíbrio de poder, Israel está usando as negociações como uma ferramenta para melhorar suas relações e polir sua imagem perante a comunidade internacional, além de utilizá-las para ganhar tempo a fim de criar fatos novos, como a construção de mais colônias, a expulsão de palestinos, a judaicização de Jerusalém e a demolição dos bairros da cidade. Israel também usa as negociações como cobertura, para tirar a atenção de seus crimes e para diluir as exigências palestinas. Israel está explorando as negociações para normalizar as suas relações com o mundo árabe e islâmico e para penetrar nele e para distorcer a natureza do conflito. Israel é o único beneficiário das negociações.


As negociações, com o desequilíbrio de poder existente hoje, é a submissão dos palestinos aos requisitos, às condições e aos ditames da ocupação israelense. Não é um processo em igualdade de condições, pois, assim como não existe atualmente paridade no campo do confronto, tampouco há paridade em torno da mesa de negociação.


[Continua]


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Mishaal Explains Hamas’s Strategy in Dealing with the Israeli Occupation