quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Pico petrolífero e o governo alemão

Estudo militar adverte quanto a uma crise petrolífera potencialmente drástica

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por Stefan Schultz [*]

Um estudo de um think tank militar alemão analisou como o "Pico petrolífero" pode mudar a economia global. A minuta do documento interno – divulgada na Internet – mostra pela primeira vez quão cuidadosamente o governo alemão tem considerado uma potencial crise energética.

A expressão "Pico petrolífero" é utilizada pelos peritos em energia para designar o ponto no tempo em que as reservas globais de petróleo ultrapassam o seu zênite e a produção começa gradualmente a declinar. Isto resultaria numa crise permanente da oferta – e o receio da mesma pode desencadear turbulência nos mercados de commodities e de ações.

A questão é tão politicamente explosiva que se torna notável quando uma instituição como a Bundeswehr, as forças armadas alemãs, simplesmente utiliza a expressão "Pico petrolífero". Mas um estudo militar atualmente a circular na blogosfera alemã vai mais além.

O estudo é um produto do departamento de Análise Futura do Bundeswehr Transformation Center, um think tank cuja tarefa é fixar uma direção para as forças armadas alemãs. A equipe de autores, dirigida pelo tenente-coronel Thomas Will, usa por vezes uma linguagem dramática para descrever as consequências de um esgotamento irreversível de matérias-primas. O estudo adverte de mudanças no equilíbrio global de poder, da formação de novos relacionamentos baseados na interdependência, de um declínio na importância dos países industriais do ocidente, do "colapso total dos mercados" e de crises políticas e econômicas sérias.

O estudo, cuja autenticidade foi confirmada ao SPIEGEL ONLINE por fontes em círculos governamentais, não era destinado à publicação. O documento diz-se estar numa etapa de minuta e consistir unicamente de opiniões científicas, as quais ainda não foram editadas pelo Ministério da Defesa e outros corpos governamentais.

O autor principal, Will, recusou-se a comentar acerca do estudo. Permanece em dúvida se a Bundeswehr ou o governo alemão teriam consentido em publicar o documento na sua forma atual. Mas o estudo mostra quão intensamente o governo alemão está empenhado na questão do Pico petrolífero.

Atividades paralelas no Reino Unido

A fuga do documento tem paralelos com informações recentes do Reino Unido. Só na semana passada o jornal Guardian relatou que o British Department of Energy and Climate Change (DECC) está a manter secretos documentos que mostram como o governo britânico está muito mais preocupado acerca da crise de oferta do que ele quer admitir.

Segundo o Guardian, o DECC, o Banco da Inglaterra e o Ministério britânico da Defesa estão a trabalhar lado a lado com representantes da indústria para desenvolver um plano de crise destinado a tratar da possível escassez no abastecimento de energia. Investigações efetuadas por peritos em energia, apresentadas em workshops britânicos, foram vistas pelo SPIEGEL ONLINE. Uma porta-voz do DECC procurou reduzir a importância do processo, dizendo ao Guardian que as investigações eram "rotina" e não tinham implicações políticas.

O estudo das forças armadas alemãs pode não ter consequências políticas imediatas, mas mostra que o governo alemão teme que a escassez possa acontecer rapidamente.

Segundo o relatório alemão, havia "alguma probabilidade de que o Pico petrolífero ocorresse em torno do ano 2010 e que o impacto sobre a segurança seja expectável ser sentido 15 a 30 anos depois". A previsão da Budeswehr é consistente com a de cientistas bem conhecidos que assumem que ter a produção global de petróleo já ultrapassado o seu pico ou que o faça ainda este ano.

Fracassos do mercado e reações em cadeia internacionais

Os impactos políticos e econômicos do Pico petrolífero sobre a Alemanha foram agora estudados pela primeira vez em profundidade. O perito em petróleo bruto Steffen Bukold avaliou e resumiu as descobertas do estudo da Bundeswehr. Aqui está uma visão geral dos pontos centrais:

  • O petróleo determinará o poder: O Bundeswehr Transformation Center escreve que o petróleo tornar-se-á um fator decisivo na determinação de uma nova paisagem das relações internacionais: "A importância relativa dos países produtores de petróleo no sistema internacional está em crescimento. Estes países estão a utilizar as vantagens daí resultantes para expandir o âmbito das suas políticas interna e externa e estabelecerem-se como um novo ou renascente poder regional, ou em alguns casos mesmo como um poder global".
  • Aumento da importância dos exportadores de petróleo: Para os exportadores de petróleo, mais competição por recursos significará um aumento no número de países a competirem por favores junto aos países produtores. Para estes últimos isto abre uma janela de oportunidade a qual pode ser utilizada para implementar objetivos políticos, econômicos ou ideológicos. Como esta janela de tempo só estará aberta por um período limitado, "isto podia resultar numa afirmação mais agressiva de interesses nacionais por parte dos países produtores de petróleo".
  • Política ao invés do mercado: O Bundeswehr Transformation Center espera que uma crise da oferta faça recuar a liberalização do mercado da energia. "A proporção de petróleo comercializada em nível global, o mercado do petróleo acessível livremente, diminuirá quando mais petróleo for comerciado através de contratos bi-nacionais", declara o estudo. No longo prazo, avança o estudo, o mercado global de petróleo só será capaz de seguir as leis do mercado livre num sentido restrito. "Acordos bilaterais, oferta condicionada e parceiros privilegiados, tal como visto antes das crises do petróleo da década de setenta, verificar-se-ão outra vez.
  • Fracassos do mercado: Os autores pintam um quadro negro das consequências resultantes da escassez de petróleo. Como o transporte de bens depende do petróleo bruto, o comércio internacional poderia ser sujeito a altas colossais. "A escassez na oferta de bens vitais poderia ocorrer em consequência, como por exemplo, na oferta alimentar". O petróleo é utilizado direta ou indiretamente na produção de 95% de todos os bens industriais. Os choques de preço poderiam portanto ver-se em quase qualquer indústria em ao longo de todas as etapas da cadeia de oferta industrial. "No médio prazo o sistema econômico global e todas as economias nacionais orientadas pelo mercado entrariam em colapso".
  • Retorno à economia planeada: Uma vez que virtualmente todos os setores repousam fortemente sobre o petróleo, o Pico petrolífero podia conduzir a um "fracasso parcial ou completo dos mercados", diz o estudo. "Uma alternativa concebível seria um racionamento governamental e a destinação de bens importantes ou o estabelecimento de programas de produção e outras medidas coercivas de curto prazo para em tempos de crise substituir mecanismos baseados no mercado".
  • Reação global em cadeia: "Uma reestruturação dos abastecimentos de petróleo não será igualmente possível em todas as regiões antes do início do Pico petrolífero", diz o estudo. "É provável que um grande número de estado não estará em posição de fazer a tempo os necessários investimentos", ou com "suficiente magnitude". Se houvesse crashes econômicos em algumas regiões do mundo, a Alemanha podia ser afetada. A Alemanha não escaparia às crises de outros países, porque ela está fortemente integrada na economia global.
  • Crise política de legitimidade: O estudo da Bundeswehr também levanta temores quanto à sobrevivência da própria democracia. Partes da população poderia compreender a reviravolta desencadeada pelo Pico petrolífero "como uma crise sistêmica geral". Isto criaria "espaço para alternativas ideológicas e extremistas às formas existentes de governo". A fragmentação da populaçã afectada seria provável e podia "em casos extremos levar a conflito aberto".

Os cenários esboçados pelo Bundeswehr Transformation Center são drásticos. Ainda mais explosivas, politicamente, são as recomendações ao governo que os peritos em energia avançaram sobre estes cenários. Eles argumentam que "estados dependentes de importações de petróleo" serão forçados a "mostrar mais pragmatismo em relação a estados produtores de petróleo na sua política externa". As prioridades políticas terão de ser de alguma forma subordinadas, afirmam eles, à preocupação predominante de assegurar abastecimentos de energia.

Por exemplo: A Alemanha teria de ser mais flexível em relação aos objectivos da política externa da Rússia. Ela também teria de mostrar mais restrições na sua política externa em relação a Israel, para evitar alienar países árabes produtores de petróleo. O apoio incondicional a Israel e ao seu direito de existir actualmente é uma pedra fundamental da política externa alemã.

O relacionamento com a Rússia, em particular, é de importância fundamental para o acesso alemão ao petróleo e ao gás, diz o estudo. "Para a Alemanha, isto envolve um ato de equilíbrio entre relações estáveis e privilegiadas com a Rússia e as sensibilidades dos vizinhos (da Alemanha) a Leste". Por outras palavras, a Alemanha, se quiser garantir a sua própria segurança energética, deveria ser acomodatícia em relação aos objetivos da política externa de Moscou, mesmo se isto significar provocar riscos nas suas relações com a Polônia e outros estados do Leste europeu.

O Pico petrolífero também teria profundas consequências para a posição de Berlim em relação ao Médio Oriente, de acordo com o estudo. "Um reajustamento da política do Médio Oriente da Alemanha em favor de relações mais intensas com países produtores tais como o Irã e a Arábia Saudita, os quais têm as maiores reservas de petróleo convencional na região, pode implicar uma tensão na relações alemãs-israelenses, dependendo da intensidade da mudança política", escrevem os autores.

Quando contactado pelo SPIEGEL ONLINE, o Ministério da Defesa não quiz comentar o estudo.
[*
] Stefan_Schultz@spiegel.de

O artigo original, em inglês, encontra-se em: Military Study Warns of a Potentially Drastic Oil Crisis
Esta tradução encontra-se em: Resistir.info.