domingo, 15 de agosto de 2010

Uma viagem instrutiva à China: Reflexões de um filósofo

Uma viagem instrutiva à China: Reflexões de um filósofo

Domenico Losurdo
15.Ago.10 :: Outros autores

Este importante texto de Domenico Losurdo é bastante mais do que um invulgarmente lúcido testemunho de diferentes aspectos do que pôde observar em recente viagem à China. É uma profunda reflexão que, assente em sólido conhecimento da sua complexa realidade e evolução histórica e fundamentada no marxismo, desmonta e denúncia muitas das distorções e preconceitos que a ideologia dominante (incluindo a sua variante oportunista «de esquerda») todos os dias procura inculcar acerca da República Popular da China.





De 3 a 16 de Julho tive o privilégio de visitar algumas cidades e realidades da China, no âmbito duma delegação convidada pelo Partido Comunista chinês, delegação de que também faziam parte representantes dos partidos comunistas de Portugal, da Grécia e de França e da Linke alemã: quanto à Itália, para alem do abaixo assinado, participaram na viagem Vladimiro Giacchè e Francesco Maringiò. Este texto não é um diário nem uma crónica: são apenas reflexões fruto duma experiência extraordinária.

1. A primeira coisa que salta aos olhos no decurso do encontro com os representantes do Partido comunista chinês e com os dirigentes das fábricas, das escolas e dos bairros visitados, é a tónica autocrítica, digamos mesmo a paixão autocrítica de que dão provas os nossos interlocutores. Neste ponto, é evidente a rotura com a tradição do socialismo real. Os comunistas chineses não deixam de sublinhar que o caminho a percorrer é longo, e numerosos e gigantescos são os problemas a resolver e os desafios a enfrentar, e que, apesar de tudo, o seu país continua a fazer parte do Terceiro Mundo.

Na verdade, no decurso da nossa viagem, não encontrámos esse Terceiro Mundo. Pelo menos em Pequim, que fascina com o seu aeroporto ultramoderno e reluzente, e ainda menos em Qingdao, onde se desenrolaram os Jogos Olímpicos 2008 e que lembra uma cidade ocidental duma beleza e elegância especiais e com um nível de vida elevado. Também não encontrámos o Terceiro Mundo quando nos afastámos 1 500 km das regiões orientais e costeiras, as que são mais desenvolvidas e aterrámos em Chongqing, a enorme megalópole que contém um total de 32 milhões de habitantes e que, até há alguns anos, parecia ter dificuldade em acompanhar o milagre económico. Não temos dúvidas de que o Terceiro Mundo existe ainda no enorme país asiático, mas o encontro falhado com ele foi consequência não da vontade de esconder os pontos fracos da China moderna, mas do facto de que o impetuoso crescimento em curso já há mais de trinta anos está a reduzir, a diminuir e a fraccionar a um ritmo acelerado a área do subdesenvolvimento, que se esbate numa lonjura cada vez mais distante.

No ocidente não faltarão, a este propósito, os que vão fazer uma careta: desenvolvimento, crescimento, industrialização, urbanização, milagre económico duma amplitude e duração sem precedentes na história, que vulgaridade! Este snobismo do belo mundo parece considerar insignificante o facto de que milhões de pessoas tenham escapado a um destino que os condenava à subnutrição, à fome e mesmo à morte por inanição. E os que acham que o desenvolvimento das forças produtivas é apenas uma questão de bem-estar económico e de consumismo deviam ler (ou reler) as páginas do Manifesto do partido comunista que põe em evidência o idiotismo duma vida rural circunscrita pela miséria, incluindo a cultural, das fronteiras apertadas e intransponíveis. Quando visitamos hoje as maravilhas da Cidade imperial em Pequim e, a alguns quilómetros de distância, a Grande Muralha, deparamos com um fenómeno que não existia não apenas no longínquo 1973, mas até mesmo no ano 2000, ou seja, nas minhas duas viagens anteriores à China. Hoje em dia, salta aos olhos a presença maciça de visitantes chineses: são turistas com características especiais: chegam frequentemente dum canto remoto do enorme país; provavelmente é a primeira vez que visitam a capital; no plano cultural começam a apropriar-se de certa forma da noção de civilização muito antiga de que fazem parte.; deixam de ser simples camponeses ligados como numa prisão ao quinhão de terra que cultivam e tornam-se verdadeiramente cidadãos dum país cada vez mais aberto ao mundo.

Muito depois das horas de abertura para a visita dos monumentos e museus, a praça Tienanmen continua a formigar de pessoas: são muitos os que esperam e observam com orgulho o içar das cores da República Popular da China. Não, não se trata de chauvinismo: os chineses gostam de ser fotografados com visitantes estrangeiros (eu também fui alvo e aceitei com prazer pedidos deste género): é como se convidassem o resto do mundo a festejar com eles o regresso duma civilização muito antiga, oprimida e humilhada durante muito tempo pelo imperialismo. Não há a menor dúvida: o prodigioso desenvolvimento das forças produtivas não se limitou a arrancar da miséria e das privações centenas de milhões homens e de mulheres; assegurou-lhes uma dignidade individual e nacional, permitiu-lhes alargar consideravelmente o seu horizonte abrindo-se perante o enorme país de que fazem parte e, mais ainda, perante o mundo inteiro.

2. Mas o desenvolvimento das forças produtivas não é sinónimo de degradação e destruição da natureza? Eis-nos em presença duma preocupação, e até mesmo duma certeza evidenciada de modo especialmente gritante pela esquerda ocidental. Vemos nisto aflorar uma estranha visão da natureza, que é considerada doente se as plantas murcham e secam mas que, segundo parece, é considerada perfeitamente sã se os que definham e morrem em massa são os homens e as mulheres. Há um certo ecologismo que acaba por escavar ainda mais profundamente o abismo que, no entanto, pretende querer criticar, entre o mundo humano e o mundo natural. Mas, mesmo assim, concentremo-nos na natureza no seu sentido estrito. Há uns tempos um historiador bastante conhecido (Niall Ferguson) escreveu um artigo, publicado também no Corriere della Sera, que logo no título denunciava “a guerra da China à natureza”. Na realidade, logo no longo percurso que vai do aeroporto de Pequim à Grande Muralha, e no outro longo trajecto que, seguindo um outro percurso, vai do centro de Pequim ao aeroporto, apercebemo-nos duma quantidade impressionante de árvores obviamente recentemente plantadas, no âmbito dum projecto bastante ambicioso de reflorestação e de extensão da superfície florestal em que todo o país investe. Uns dias antes do fim da nossa viagem tivemos a possibilidade de visitar uma área ecológica de 10 quilómetros quadrados, situada nos arredores de Weifang, uma cidade do nordeste em rápida expansão, dedicada ao desenvolvimento da alta tecnologia mas que simultaneamente quer distinguir-se pela sua qualidade de vida. A área ecológica, cujo acesso é livre e gratuito para toda a gente, e que só pode ser visitada a pé ou com um minúsculo autocarro aberto e movido a electricidade, foi libertada recuperando um território até então muitíssimo degradado e que actualmente resplandece numa beleza encantadora e serenidade. O desenvolvimento industrial e económico não está em contradição com o respeito pelo ambiente. Claro que o equilíbrio entre estas duas exigências é extremamente difícil num país como a China, que tem que alimentar um quinto da população mundial tendo apenas à sua disposição um sétimo da superfície cultivável: é neste enquadramento que devem ser situados os erros praticados e os grandes prejuízos infligidos ao ambiente nos anos em que a prioridade absoluta era o arranque económico necessário para pôr fim o mais rapidamente possível à desnutrição e à miséria das massas. Mas esta fase felizmente foi ultrapassada: actualmente é possível promover um ecologismo que, enquanto garante a vida das árvores e das flores, também saiba garantir a vida e a saúde dos homens e das mulheres.

3. Já falei da paixão autocrítica que parece caracterizar os comunistas chineses. São eles que insistem no carácter intolerável, em especial, do fosso crescente entre cidades e campo, entre zonas litorais por um lado e o centro e o oeste do país por outro. Esses fenómenos não são a demonstração do desvio capitalista da China? É uma tese que está amplamente espalhada na esquerda ocidental e que parece encontrar eco entre alguns membros da nossa delegação multipartidária. No debate franco e vivo que se desenvolve, intervenho com uma pontuação por assim dizer “filosófica”. Podemos proceder a duas comparações bastante diferentes uma da outra. Não podemos comparar o “socialismo de mercado” com o socialismo a que chamamos dos nossos “desejos”, com o socialismo de certa forma maduro, e portanto pôr em evidência os limites, as contradições, as desarmonias, as desigualdades que caracterizam o primeiro: são os próprios comunistas chineses que insistem no facto de que o país que dirigem está apenas na “fase primária do socialismo”, fase destinada a durar até à metade deste século, confirmando a grande duração e a complexidade do processo de transição necessário para chegar à edificação duma sociedade nova. Mas, isso não torna lícito confundir o “socialismo de mercado” com o capitalismo. Como ilustração da diferença radical que subsiste entre os dois podemos ter que recorrer a uma metáfora. Na China estamos na presença de dois comboios que se afastam da gare chama “Subdesenvolvimento”. Sim, um desses dois comboios é muito rápido, o outro de velocidade mais reduzida: por causa disso, a distância entre os dois aumenta progressivamente, mas não podemos esquecer que os dois avançam na mesma direcção; e também é preciso lembrar que não faltam os esforços para acelerar a velocidade do comboio relativamente menos rápido e que, de qualquer modo, dado o processo de urbanização, os passageiros do comboio muito rápido são cada vez mais numerosos. No âmbito do capitalismo, pelo contrário, os dois comboios em questão avançam em direcções opostas. A última crise pões em destaque um processo em acção desde há várias décadas: o aumento da miséria das massas populares e o desmantelamento do Estado social encontram-se a par da concentração da riqueza nas mãos duma oligarquia parasitária restrita.

4. E, no entanto, entre os comunistas chineses cresce a intolerância no que se refere ao afastamento entre zonas litorais e áreas do centro-oeste, entre cidades e campo e no seio da própria cidade. É uma atitude observada com surpresa e agrado por toda a delegação da Europa ocidental. Esta intolerância exibe-se de forma aguda em Chongqing, a metrópole situada a 1 500 quilómetros de distância da costa. A palavra de ordem (Vão para oeste!), que incita a estender ao centro e ao oeste do enorme país os prodigiosos desenvolvimentos do leste, foi lançada já há dez anos. Os primeiros resultados são visíveis: por exemplo, o Tibete e a Mongólia interior exibem nos últimos anos uma taxa de crescimento superior à média nacional. Não é o caso de Xinjiang onde, em 2009 (o ano da crise), em relação a uma média nacional de 8,7%, o PIB “só” aumentou 8,1%. E foi em Xinjiang precisamente que se derramou, durante as últimas semanas e meses, uma nova vaga de financiamentos e de estimulantes. Mas agora, para além das regiões habitadas por minorias nacionais, a que o governo central dedica evidentemente uma atenção especial, trata-se de aplicar a nível geral uma aceleração decisiva e um significado novo e mais radical à política do Vão para oeste!

Tornada num município autónomo sob a dependência directa do governo central (na mesma situação estão Pequim, Xangai e Tianjin) e podendo assim beneficiar de estimulantes e de apoios de todo o tipo, Chongqing aspira a tornar-se na nova Xangai, ou seja, aspira não só em ultrapassar o atraso mas atingir o nível da China mais avançada, e constituir um ponto de referência também no plano mundial. A megalópole situada no interior do grande país asiático aparece diante dos nossos olhos como um enorme estaleiro: a actividade de potencialização das infra-estruturas desenvolve-se em pleno, tal como a da construção de fábricas, de escritórios, de habitações civis; as fileiras de árvores recém-plantadas e ciosamente tratadas saltam aos olhos, tal como as sebes de verdura que ladeiam e por vezes também separam estradas e auto-estradas. Sim, porque para lá do milagre económico, Chongqing persegue um objectivo ainda mais ambicioso: pretende apresentar-se a toda a nação como um “novo modelo” de desenvolvimento, regulando melhor e de modo mais “harmonioso” as relações no interior da cidade, entre cidade e campo e entre homem e natureza. Naquilo que deverá vir a ser a nova Xangai, a referência a Mão Zedong é permanente, e não se trata apenas da homenagem devida ao grande protagonista da luta de libertação nacional do povo chinês, ao pai da pátria que, e não por acaso, está na praça Tienanmen e nas notas do banco; trata-se de levar a sério a retoma do “pensamento de Mão Zedong”, inscrito no estatuto do Partido comunista chinês. Em Chongqing temos a nítida impressão de que começaram os debates e, pressupomos, a luta política para a preparação do Congresso previsto para daqui a dois anos.

Convém, neste momento, livrarmo-nos de um equívoco possível: a discussão não se trava sobre a política de reforma e de abertura definida há mais de trinta anos na Terceira sessão plenária do XI comité central (18-22 de Dezembro de 1978): no Estatuto do PCC está inscrita também a retoma da “teoria de Deng Xiaoping” e da “importante ideia das três representações”, apesar de a categoria de “pensamento” querer ter uma importância estratégica maior do que a categoria de “teoria” (que faz referência a uma conjuntura, apesar de ser uma conjuntura de longo prazo) e que a categoria de “ideia” (a qual, por mais “importante” que seja, designa uma contribuição sobre um aspecto determinado). Mas, acima de tudo, ninguém quer voltar à situação em que na China não havia “igualdade” senão no sentido em que os dois comboios da metáfora que utilizei várias vezes estavam ambos parados na gare “Subdesenvolvimento” ou se afastavam dela lentamente. Não, de agora em diante pode-se considerar como definitivamente adquirida a consciência segundo a qual o socialismo não é a distribuição igual da miséria. Tanto mais que uma “igualdade” dessas é totalmente ilusória e pode mesmo funcionar ao contrário. Quando a miséria atinge um certo nível, pode conter o risco da morte por inanição. Nesse caso, por mais modesto e reduzido que seja, o naco de pão que garante a sobrevivência aos mais sortudos assinala apesar de tudo uma desigualdade absoluta, a desigualdade absoluta que se mantém entre a vida e a morte. Foi, antes da introdução da política de reforma e de abertura, o que se constatou nos anos mais trágicos da República Popular da China: consequência quer da herança catastrófica derivada da pilhagem e da opressão imperialista, quer do embargo impiedoso imposto pelo ocidente, quer dos graves erros praticados pela nova direcção política. A centralidade do dever de desenvolvimento das forças produtivas mantém-se pois garantida, mas essa centralidade pode ser interpretada de modo sensivelmente diferente…

5. A pessoa que foi chamada para dirigir Chongqing é Bo Xilai, o brilhante ex-ministro do comércio exterior. É uma circunstância que nos permite reflectir sobre o processo de formação do grupo dirigente na China. Um representante do governo central que, no desenvolvimento da sua função, se distinguiu e adquiriu um prestígio até mesmo no plano internacional, é enviado para a província para enfrentar uma tarefa de natureza diferente e de proporções gigantescas. Combatendo a corrupção de modo capilar e radical e propondo na teoria e na prática real de governação um “modelo novo”, destinado a queimar etapas na liquidação das desigualdades que se tornaram intoleráveis, e na ralização da “sociedade harmoniosa”, Bo Xilai suscitou um debate nacional: é fácil prever a sua presença numa posição eminente no grupo dirigente que sairá do XVIII Congresso do PCC, apesar de que seria um erro dar como dado adquirido o resultado desse debate (e da luta política) em curso. Portanto: a concluir um período de incertezas, de conflitos e de violências, à primeira geração de revolucionários que tinham no centro Mao Zedong, sucedeu a segunda geração de revolucionários com Deng Xiaoping no centro. Seguiram-se depois a terceira e a quarta gerações de revolucionárias tendo ao centro, respectivamente, Jiang Zenin e Hu Jintao. Do próximo congresso do Partido sairá a quinta geração de revolucionários. É um perspectiva dada em seu tempo por Deng Xiaoping que confirmou assim a sua clarividência e a sua lucidez na construção do Partido e do Estado: a personalização do poder e o culto da personalidade foram ultrapassados; pôs-se fim à ocupação vitalícia dos cargos políticos; afirmou-se um processo de formação e de secção dos grupos dirigentes que, até agora, tem dado excelentes resultados.

6. Mas até onde podemos considerar como socialista o “socialismo de mercado” teorizado e praticado pelo Partido comunista chinês? Na delegação multicolorida que vem do ocidente não faltam as dúvidas, as perplexidades, as críticas abertas. Desenvolve-se um debate, aberto e aceso, mais uma vez encorajado pelos nossos interlocutores e anfitriões. Não subsistem dúvidas de que, na sequência da afirmação da política de reforma e de abertura, a área da economia do Estado foi restringida e que a área da economia privada se alargou: estaremos na presença dum processo de restauração do capitalismo? Os comunistas chineses fazem notar que o papel central e dirigente do Estado (e do Partido comunista) se mantém firme: qual é?

O panorama económico e social da China de hoje caracteriza-se pela presença simultânea das formas mais diversas de propriedade: propriedade do Estado; propriedade pública (neste caso o proprietário não é o Estado central mas, por exemplo, um município); sociedades por acções no âmbito das quais a propriedade do Estado ou a propriedade pública detém a maioria absoluta, ou então uma maioria relativa, ou ainda uma percentagem significativa do pacote de acções; propriedade cooperativa; propriedade privada. Nestas condições, torna-se muito difícil calcular com rigor a percentagem da economia do Estado e pública. Quando voltei para casa, encontro um número especialmente interessante do International Herald Tribune: leio nele um cálculo efectuado por um professor da prestigiada universidade de Yala, precisamente Chen Zhiwu (um americano, portanto, de origem chinesa, que está talvez numa posição privilegiada para se orientar na leitura da economia do grande país asiático) indicando que “o Estado controla três quartos da riqueza da China” (7 de Julho de 2010, pág, 18). É preciso acrescentar a isto um dado geralmente esquecido: na China a propriedade do solo está inteiramente nas mãos do Estado; os camponeses têm o usufruto dele, que também podem vender, mas a sua propriedade não. No que se refere à indústria, outros cálculos atribuem um peso mais reduzido ao Estado. Em todo o caso, os que imaginam um processo gradual e irreversível de retirada do Estado da economia, estão completamente enganados. No Newsweek de 12 de Julho, um artigo de Isaac Stone Fish chama a atenção para as “empresas de propriedade do Estado que dominam de modo crescente a economia chinesa”. Em todo o caso – reafirma o semanário americano – no desenvolvimento do oeste (que a partir de agora se desenha em toda a sua amplitude e profundidade), o papel da empresa privada será bem mais reduzido do que o desempenhado no seu tempo no desenvolvimento do leste.

Os camaradas chineses fazem-nos notar que, ao introduzirem fortes elementos de concorrência, a área económica privada contribuiu em última análise para o reforço da área do Estado e pública, que foi assim obrigada a desembaraçar-se da burocracia, da falta de empenhamento, da ineficácia, do clientelismo. Com efeito, precisamente graças às reformas de Deng Xiaoping, as empresas do Estado gozam actualmente duma solidez e duma competitividade sem precedentes na história do socialismo. É um ponto que pode ser esclarecido a partir de um número do Economist (10-16 Julho 2010) que compro e percorro no confortável aeroporto de Pequim, enquanto espero o voo de regresso a Itália; o artigo de fundo sublinha que quatro dos dez bancos mundiais mais importantes são actualmente chineses. Esses bancos, contrariamente aos bancos ocidentais, estão de excelente saúde, “ganham dinheiro”, mas “o Estado detém a maioria das acções e o Partido comunista nomeia os mais altos dirigentes, cuja retribuição é uma fracção da dos seus homólogos ocidentais”. Além disso, esses dirigentes “têm que responder a uma autoridade superior à da bolsa”, ou seja, às autoridades de um Estado dirigido pelo Partido comunista. O prestigiado semanário financeiro inglês não consegue convencer-se destas novidades inauditas; tem esperança e aposta que as coisas vão mudar. Hoje há um facto que aparece aos olhos de toda a gente: a economia do Estado e pública não é sinónimo de ineficácia, como pretendem os paladinos do neo-liberalismo, e os bancos não têm que pagar aos seus dirigentes como nababos para serem competitivos no mercado interno e internacional.

7. É provável que a área económica privada satisfaça exigências ulteriores. Primeiro que tudo, torna mais fácil a introdução da tecnologia mais avançada dos países capitalistas: não esqueçamos que nesse ponto os EU procuram ainda impor um embargo à custa da China. Mas há um outro ponto, de que me apercebo quando visitamos o muito avançado parque industrial de Weifang. Em certos casos são os chineses do ultramar que fundaram as empresas privadas: estudaram no estrangeiro (sobretudo nos EU), obtendo excelentes resultados e acumulando por vezes algum capital. Regressam agora à pátria, com uma decisão que suscita alguma perturbação na região em que se estabeleceram. Como é possível que intelectuais de primeiro plano abandonem a “democracia” para regressar à “ditadura”? Para além do apelo patriótico que os convida a participar no esforço colectivo de todo um povo para que a China atinja os níveis mais avançados de desenvolvimento, de tecnologia e de civilização, estes chineses do ultramar são também atraídos pela perspectiva de fazer valer os seus talentos e a sua experiência tanto nas Universidades como nas empresas privadas de alta tecnologia que fundam. Noutros termos, estamos perante a continuação política de frente unida teorizada e praticada por Mão não só no decurso da luta revolucionária mas também durante vários anos após a fundação da República Popular da China.

Mas entremos finalmente nessas fábricas de propriedade privada. Com ou sem chineses do ultramar, reservam-nos grandes surpresas. Os que vêm ao nosso encontro são em primeiro lugar membros do Comité do Partido, cujas fotografias estão em grande destaque nos diversos serviços. Na conversas aparecem quase casualmente os condicionalismos que pesam sobre a propriedade. Esta é obrigada ou pressionada a reinvestir uma parte considerável dos lucros (por vezes até 40%) no desenvolvimento tecnológico da empresa; uma outra parte dos lucros, cuja percentagem é difícil de calcular, é utilizada para intervenções de carácter social (por exemplo, a construção de escolas profissionais que são entregues ao Estado ou ao município, ou então o socorro a vítimas duma catástrofe natural). Se nos lembrarmos que estas empresas dependem fortemente do crédito atribuído por um sistema bancário controlado pelo Estado e se pensarmos também na presença no interior desses empresas do Partido e do sindicato, impõe-se uma conclusão: nesses empresas privadas o poder da propriedade privada é equilibrado e limitado por uma espécie de contra-poder.

Mas qual é o papel desempenhado pelo Partido e pelo sindicato? As respostas que recebemos não satisfazem todos os membros da nossa delegação. Certamente, dando novamente eco a uma tendência bastante espalhada na esquerda ocidental, concentram a sua atenção exclusivamente no nível dos salários. Os nossos interlocutores chineses, pelo contrário, explicam-nos que, para além da melhoria das condições de vida e de trabalho dos operários, preocupam-se com a contribuição que as suas empresas podem dar para o desenvolvimento da economia e da tecnologia de toda a nação. Desta troca de ideias vemos novamente surgir a oposição entre as duas figuras em que Lenine insiste em Que faire ? O representante da esquerda ocidental, que apela aos operários chineses para rejeitar todos os compromissos com o poder do Estado na sua luta por salários mais elevados, julga estar a ser radical e mesmo revolucionário. Na realidade, coloca-se na esteira do reformista ou, pior ainda, do “secretário” corporativista “dum sindicato qualquer” que Lenine censura por perder de vista a luta de emancipação nos seus diversos aspectos nacionais e internacionais, tornando-se assim por vezes o ponto de apoio de “uma nação que explora o mundo todo” (naquela época a Inglaterra). O revolucionário “tribuno popular” conduz-se de forma muito diferente. Claro que, em relação a 1902 (ano da publicação de Que faire ?), a situação mudou radicalmente. Entretanto, na China o “tribuno popular” pode contar com o apoio do poder político; o que não quer dizer que, para ser revolucionário, ele, aproveitando-se dos ensinamentos de Lenine, não deva saber encarar o conjunto das relações políticas e sociais a um nível nacional e a um nível internacional. Impõe-se um aumento consistente dos salários e está já previsto, favorecido ou promovido pelo próprio poder central (como é reconhecido pela grande imprensa internacional)nas este aumento, para além de melhorar as condições de vida e de trabalho dos operários, visa aumentar o conteúdo tecnológico dos produtos industriais e consolidar assim a economia chinmesa no seu conjunto, tornando-a também menos dependente das exportações. As (justas) reivindicações salariais imediatas não podem comprometer a realização do objectivo estratégico de reforço de um país que, com o seu crescimento económico, refreia cada vez mais os planos do imperialismo ou da “hegemonia”, como os nossos interlocutores chineses preferem dizer de modo mais diplomático.

8. Finalmente, último objecto de escândalo: em homenagem à “importante ideia das três representações”, até os empresários são aceites nas fileiras do Partido comunista chinês. E de novo surgem as preocupações e as angústias de alguns membros da delegação europeia: estaremos a assistir ao aburguesamento do Partido que deveria garantir o sentido da marcha socialista da economia de mercado? Para começar, os interlocutores chineses fazem notar que o número dos empresários aceites nas fileiras do Partido (após um processo rigoroso de verificação e selecção) é insignificante em comparação com uma massa de militantes que quase atinge os 80 milhões; noutros termos, trata-se duma presença simbólica. Mas esta explicação não é suficiente. Vismos que alguns desses empresários desempenham um appel nacional: em certos sectores da economia eliminaram ou reduziram a dependência tecnológica da China vis-à-vis o estrangeiro; por vezes, não apenas no plano objectivo mas de modo consciente alguns deles colocaram-se na primeira fila na luta travada pelo Partido comunista desde 1949: a luta para derrotar o imperialismo passando da conquista da independência no plano político para a conquista da independência também no plano económico e tecnológico. Num mundo que se caracteriza cada vez mais pela knowledge economy, ou seja por uma economia baseada no conhecimento, pode acontecer que o herói do trabalho stakhanoviste da URSS de Estaline assuma o aspecto totalmente novo de um técnico super-especializado que, lançando uma empresa de alto valor tecnológico, forneça uma contribuição importante para a defesa e para o reforço da pátria socialista.

Podemos fazer uma última consideração. Na onda do “socialismo de mercado” constituiu-se um novo estrato burguês em rápida expansão. A cooptação de alguns dos seus membros no quadro do Partido comunista comporta uma decapitação política deste novo estrato, do mesmo modo que na sociedade burguesa a cooptação por parte da classe dominante de algumas personalidades de extracção operária ou popular estimua a decapitação política das classes subalternas.

9. Chegou a altura de tirar conclusões. No meu inglês claudicante, exponho-as por ocasião de alguns banquetes e, sobretudo, do jantar que precede a viagem de regresso e que se desenrola na presença entre outros de Huang Huaguang, director-geral do Gabinete para a Europa ocidental do Departamento Internacional do Comité Central do PCC. Todos os participantes na viagem são convidados a exprimir-se com grande franqueza. Nas minhas intervenções, tento dialogar também com os outros membros da delegação da Europa ocidental e provavelmente sobretudo com eles.

Quando declaram encontrar-se apenas na fase primária do socialismo e prevêem que essa fase vai durar até metade do século XXI, os comunistas chineses reconhecem indirectamente o peso qie as relações capitalistas continuam a exercer no seu país imenso e tão variado. Por outro lado, o monopólio do poder político nas mãos do Partido comunista (e pelos 8 partidos menores que reconhecem a sua direcção) está à vista de toda a gente. Para um observador atento, também não deverá escapar o facto de que, situadas como estão numa posição de subalternidade no plano económico, político e social, as próprias empresas privadas, mais do que levadas pela lógica do lucro máximo, são estimuladas, empurradas e pressionadas a respeitar uma lógica diferente e superior: a do desenvolvimento cada vez mais generalizado e cada vez mais ramidificadamente espalhado tanto da economia como da tecnologia nacional. Em última análise, através duma série de mediações, até mesmo essas empresas privadas estão sujeitas ou subordinadas ao “socialismo de mercado”. E portanto os sermões moralistas que uma certa esquerda ocidental não se cansa de fazer ao Partido comunista chinês são, por um lado, redundantes e supérfluos e, por outro lado, infundados e inconsistentes.

Evidentemente, é sempre legítimo formular dúvidas e críticas sobre o “socialismo de mercado”. Mas pelo menos num ponto considero que devia ser possível à esquerda de chegar a um consenso. A política de reforma e de abertura introduzida por Deng Xiaoping não significou de forma alguma a homologação da China ao ocidente capitalista como se o mundo inteiro passasse a ser caracterizado por um mapa calmo. Na realidade, a partir precisamente de 1979 desenvolveu-se uma luta que escapou aos observadores mais artificiais mas cuja importância se manifesta com uma evidência cada vez maior. Os EU e seus aliados esperavam reafirmar uma divisão internacional do trabalho nesta base: a China teria que se limitar à produção, a baixo preço, de mercadorias desprovidas de real conteúdo tecnológico. Por outras palavras, estavam à espera de conservar e acentuar o monopólio ocidental da tecnologia: nesse plano, a China, como todo o Terceiro Mundo, deveria continuar a sofrer uma relação de dependência em relação à metrópole capitalista. Percebe-se bem que os comunistas chineses tenham interpretado e vivido a luta para fazer fracassar esse projecto neo-colonialista como a continuação da luta de libertação nacional; não há uma verdadeira independência política sem independência económica; pelo menos os que se reclamam marxistas deviam estar de acordo com esta verdade! Graças à manutenção cobiçada do monopólio da tecnologia, os EU e seus aliados pretendiam continuar a ditar as leis das relações internacionais. Com o seu extraordinário desenvolvimento económico e tecnológico, a China abriu a via para a democratização das relações internacionais. Os comunistas e também todos os verdadeiros democratas deviam congratular-se com esse resultado: Actualmente há melhores condições para a emancipação política e económica do Terceiro Mundo.

Neste ponto convém desembaraçarmo-nos de um equívoco que torna difícil a comunicação entre o PCC e a esquerda ocidental no seu conjunto. Mesmo no meio de oscilações e contradições de todo o tipo, desde a sua fundação que a República Popular da China se empenhou em lutar contra não uma mas duas desigualdades, uma de carácter interno e a outra de carácter internacional. Na sua argumentação da necessidade da política de reforma e de abertura que desejava, Deng Xiaoping, numa conversa de 10 de Outubro de 1978, chamava a atenção para o facto que o “fosso” tecnológico estava em vias de se alargar em comparação com os países mais avançados. Estes desenvolviam-se “a uma velocidade terrível”, enquanto que a China corria o risco de ficar cada vez mais para trás (Selected Works, vol. 3, pág. 143). Mas se falhasse o rendez-vous com a nova revolução tecnológica, encontrar-se-ia numa situação de fraqueza semelhante à que a tinha entregue, indefesa, às guerras do ópio e à agressão do imperialismo. Se falhasse esse rendez-vous, para além do prejuízo para si mesma, a China provocaria um enorme prejuízo à causa da emancipação do Terceiro Mundo no seu conjunto. É preciso acrescentar que, precisamente porque soube reduzir de forma drástica a desigualdade (económica e tecnológica) no plano internacional, a China está hoje em melhores condições, graças aos recursos económicos e tecnológicos que acumulou entretanto, para enfrentar o problema da luta contra a desigualdade no plano interno.

O “século das humilhações” da China (o período que vai de 1840 a 1949, a saber, desde a primeira guerra do ópio à conquista do poder pelo PCC) coincidiu historicamente com o século da mais profunda depravação moral do ocidente: guerras do ópio com a devastação infligida a Pequim no Palácio de Verão e coma destruição e pilhagem das obras de arte que continua, expansionismo colonial e recurso a práticas esclavagistas ou genocidárias em detrimento das “raças inferiores”, guerras imperialistas, fascismo e nazismo, com a barbárie capitalista, colonialista e racista que atingiu o auge. Da forma como o ocidente souber encarar o renascimento e o regresso da China, poderemos avaliar se ele está decidido a fazer realmente as contas com o século da sua mais profunda depravação moral. Que pelo menos a esquerda saiba ser o intérprete da cultura mais avançada e mais progressista do ocidente!

Original, em italiano, publicado sábado, 24 de Julho de 2010, no blog de Domenico Losurdo
Tradução para o português: Margarida Ferreira para ODiario.info