quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Tortura. Corrupção. Guerra civil. Os EUA, sem dúvida, deixaram sua marca

Tropas dos EUA dizem adeus ao Iraque


20/8/2010, Robert Fisk, The Independent, UK

Traduzido por Vila Vudu



Quando alguém invade país dos outros, tem de haver um primeiro soldado – como tem de haver um último.


O primeiro homem da primeira unidade da primeira coluna do exército norte-americano invasor a chegar à praça Fardous no centro de Bagdá em 2003 foi o cabo David Breeze do Terceiro Batalhão, Quarto Regimento da Marinha. Por isso, é claro, ele me disse que não era, não, de modo algum, soldado. O pessoal da Marinha não é soldado, são Marines. Mas fazia dois meses que não falava com a mãe e então – também evidentemente – ofereci-lhe meu telefone por satélite para que ele ligasse para casa, em Michigan. Não há jornalista que não saiba que sempre se consegue boa história, quando se empresta o telefone a soldados, em guerras.


“Ei, pessoal”, disse o cabo Breeze ao telefone. “Estou em Bagdá. Liguei para dar um alô! Amo vocês. Por aqui, tudo bem. Amo vocês. Mais uns dias e essa guerra acaba. Não demora, estarei aí.” Sim. Todos eles sempre disseram que a guerra logo acabaria. Mas não consultaram os iraquianos sobre essa tão boa notícia. Os primeiros homens-bombas – um policial num carro e, depois, duas mulheres num carro – já atingiram os norte-americanos na longa estrada para Bagdá. Haverá mais centenas. Haverá mais centenas, no Iraque, no futuro.


Portanto, nada de nos deixarmos levar pelo clima festivo na fronteira do Kuwait nas últimas poucas horas, a partida das últimas tropas “de combate” antecipada em duas semanas. Nem pelos gritos de “Vencemos” de soldados adolescentes, alguns dos quais teriam 12 anos quando George W Bush mandou seu exército rumo a essa catastrófica aventura iraquiana. Deixarão para trás 50 mil homens e mulheres – um terço do total da força de ocupação norte-americana – que serão atacados e que ainda muito terão de lutar contra “os insurgentes”.


Sim. Oficialmente, lá estarão para treinar pistoleiros e milicianos e os mais pobres dos pobres que se alistaram no novo exército do Iraque, cujo comandante, nem ele, acredita que estejam preparados para defender o país antes de, com otimismo, 2020. Mas ainda será exército de ocupação – porque um dos “interesses dos EUA” que lhes caberá defender é a própria permanência deles no Iraque –, ao lado de milhares de mercenários armados e indisciplinados, ocidentais e orientais, que abrem o próprio caminho à bala no Iraque, para garantir a sobrevivência de nossos preciosos diplomatas ocidentais e de empresários. Portanto, podemos todos dizer, bem alto: não estamos saindo do Iraque.


Em vez disso, os milhões de soldados norte-americanos que passaram pelo Iraque levaram aos iraquianos a praga. Do Afeganistão – pelo qual mostraram tanto interesse depois de 2001, quanto mostrarão quando começarem a “deixar o país”, ano que vem – trouxeram para o Iraque a praga, a infecção, da al-Qa'ida. Levaram a doença da guerra civil. Injetaram doses maciças de corrupção, no Iraque, em grande escala. Estamparam o selo da tortura em Abu Ghraib – valorosa sucessora da mesma prisão dos tempos da lei vil de Saddam – depois de estamparem o selo da tortura também em Bagram e nas negras prisões do Afeganistão. Dividiram sectariamente um país que, por maiores que tenham sido a brutalidade e a corrupção dos tempos de Saddam, sempre foi, antes dos EUA, país no qual sunitas e xiitas conviviam lado a lado.


E porque os xiitas inevitavelmente reinarão nessa nova “democracia”, os soldados dos EUA deram ao Irã a vitória que buscara em vão, na guerra terrível de 1980-88, contra Saddam. De fato, os homens que atacaram a embaixada dos EUA no Kuwait nos tristes velhos tempos – homens aliados dos suicidas-bomba que explodiram a base dos Marines em Beirute em 1983 – hoje ajudam a governar o Iraque. Naquele tempo, os Dawa eram “os terroristas”. Hoje, são “os democratas”. Engraçado o quão rapidamente todos esquecemos os 241 soldados dos EUA que morreram na aventura do Líbano. O cabo David Breeze teria então dois, três anos de idade.


Mas a doença continuou. O desastre dos EUA no Iraque contagiou também a Jordânia, com a al-Qa'ida – as bombas no hotel em Amã – e, depois, outra vez o Líbano. A chegada dos pistoleiros do Fatah al-Islam ao campo palestino de Nahr al-Bared no norte do Líbano – sua guerra de 34 dias contra o exército libanês – e os muitos civis mortos foram consequência direta do crescimento dos sunitas no Iraque. A Al-Qa'ida chegou ao Líbano. Então o Iraque, controlado pelos EUA, reinfectou o Afeganistão com suicidas-bomba, os autoimoladores que converteram os soldados dos EUA, de homens que lutam, em homens que se escondem.


Seja como for, estão todos, agora, ocupados com reescrever a narrativa. Mais de um milhão de iraquianos morreram. Blair não dá a mínima – eles não contam, por favor, prestem atenção, nas suas contas de reais generosidades. Nem contam, tampouco, a maioria dos soldados dos EUA. Vieram. Viram. E perderam. E agora, contam que venceram. Ah! O quanto os árabes, sobrevivendo com seis horas de eletricidade por dia em seu país devastado, devem sonhar com mais e mais vitórias como essa!


O que foi e o que é


3.000 É o número estimado de iraquianos civis mortos no ano passado. Menos de um décimo dos 34.500 que morreram em 2007, mas prova dos perigos que os iraquianos ainda enfrentam todos os dias.


200 É o número estimado de iraquianos que ainda se suspeita que continuem nas prisões norte-americanas – pequena fração dos 26.000 prisioneiros em prisões militares, há três anos.


15,5 Número médio de horas em que há eletricidade, por dia, em Bagdá, bem mais dos que as seis horas de três anos atrás, mas ainda longe do que havia antes da invasão norte-americana, quando, sim, havia eletricidade nas cidades iraquianas, 24 horas por dia.


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Robert Fisk: US troops say goodbye to Iraq