quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Governos vão ter que explicar a carnificina no Afeganistão

Documentos agora conhecidos revelam actos passíveis de ser considerados "crimes de guerra", afirma Julien Assange, editor do Wikileaks. "Os cidadãos devem reclamar, ainda com maior veemência, explicações sobre o que as tropas estrangeiras estão a fazer no Afeganistão", propõe Miguel Portas

Artigo | 3 Agosto, 2010 - 23:57

A leitura atenta de muitas das informações contidas nos documentos secretos sobre a guerra do Afeganistão tornados públicos pelo site Wikileaks (http://wikileaks.org/) revela bastante mais do que pormenores operacionais: transmite a certeza de que estamos perante uma sangrenta agressão colonial sem princípios, onde é possível desde já detectar actos passíveis de ser considerados como "crimes de guerra", segundo Julien Assange, fundador e editor do site. "Apesar de conhecermos, desde o início, o carácter injusto, expansionista e mistificador desta invasão em que estão envolvidos os países da União Europeia, a divulgação destes documentos - um exercício de direito à informação - impõe que os cidadãos reclamem dos seus governos, ainda com maior veemência, explicações claras e sem rodeios sobre o que as tropas dos nossos países estão a fazer em terras afegãs", comentou Miguel Portas, eurodeputado da Esquerda Unitária GUE/NGL eleito pelo Bloco de Esquerda.

A consulta cuidadosa de dezenas de milhar de informações contidas nos cerca de 92 mil ficheiros divulgados pelo Wikileaks leva muito tempo, de tal modo que nem os mais altos responsáveis norte-americanos ainda se puseram de acordo quando às possíveis consequências da gigantesca fuga de informação. O presidente e alguns dos seus mais directos colaboradores afirmam que os documentos não trazem nada de novo e, como tal, não interferem no curso considerado normal das operações militares. Os militares, designadamente os generais no terreno, procuram responsabilizar os autores da fuga por actos passíveis de serem considerados "traição" porque, em seu entender, divulgaram informações qie podem ser perigosas para os militares nos teatros de operações.

Julien Assange e também responsáveis por publicações que estão a divulgar os documentos de forma organizada, designadamente o "The Guardian" e o "The New York Times", afirmam que essa acusação não é procedente uma vez que os ficheiros tornados públicos foram expurgados dos que poderiam fazer perigar a vida de soldados. O presidente Barack Obama tem razão, mesmo que seja parcial, quando afirma que os documentos em causa não trazem nada de novo. Apesar disso, muitos dos ficheiros traduzem o reconhecimento por parte dos serviços de informações e outros sectores operacionais do carácter perverso que tem assumido a política norte-americana em relação ao Afeganistão durante as últimas três décadas. Alguns documentos revelam como tropas norte-americanas e aliadas têm sido alvos de armas letais, como por exemplo os mísseis Stinger, fabricadas nos Estados Unidos e em tempos oferecidas aos grupos radicais islâmicos que combateram os soviéticos, surgindo agora nas mãos dos talibãs. Embora acontecimentos deste tipo não estejam enquadrados na deifinição de "friendly fire" ou "fogo amigável", é um facto que se trata de soldados norte-americanos vítimas de armas norte-americanas oferecidas - e não vendidas - ao fundamentalismo islâmico nos tempos em que os mercenários deste movimento eram coordenados por Ussama Bin Ladem a partir do Paquistão. Sabe-se que a CIA tentou comprar os mísseis Stinger aos radicais islâmicos quando os soviéticos foram derrotados mas os documentos agora divulgados revelam que as diligências da agência não tiveram sucesso pleno.

Os ficheiros desvendados confirmam o jogo duplo que tem sido realizado no Paquistão através dos serviços secretos do país (ISI), organização que desde sempre colaborou com a CIA, tanto actualmente como na ocasião em que Bin Laden centralizava as questões de recrutamento e financiamento dos mercenários islâmicos com apoio norte-americano e britânico. Alguns dos ficheiros revelam operações realizadas pelos talibãs em colaboração com sectores do ISI. Cerca de centena e meia de ficheiros enquadrados sob a classificação "Blue and White", branco e azul, são dedicados a operações ditas de "escalada de força" e que ilustram a dimensão trágica do massacre de civis afegãos pelas tropas estrangeiras. Muitos desses acontecimentos começaram por ser explicados como "propaganda talibã". Os ficheiros em causa pormenorizam, por exemplo, episódios como o de Kunduz (Setembro de 2009), que chegou a ameaçar o governo alemão; o de Agosto de 2008 do qual foi intérprete o esquadrão "Scorpian 26" de forças especiais norte-americanas; o massacre cometido por um esquadrão polaco numa festa de casamento em Agosto de 2007; os disparos de tropas francesas e norte-americanas, em 2008, respectivamente contra um autocarro escolar e um autocarro de passageiros. Segundo os autores, todas as informações contidas nos cerca de 150 ficheiros "Blue and White" revelam que as operações foram efectuadas de acordo com as normas operacionais. Os casos em que os "tiros de aviso" provocaram imediatamente mortos ou feridos são justificados através da ocorrência de "ricochetes".

A realidade destes incidentes em situações de "escalada de força" é mais completa. Em Kunduz, em Setembro de 2009, um general alemão pediu a intervenção de caças norte-americanos F-16 para bombardear dois auto-tanques de combustíveis que se aproximavam de um comboio da NATO uma vez que "não havia civis nas imediações". Os serviços de imprensa da NATO revelaram que a intervenção permitiu liquidar 56 "insurgentes talibãs". No entanto, morreram dezenas de civis, entre 30 e 70, facto agora confirmado e sobre o qual o ministro alemão da Defesa mentiu sem que, na prática, fossem pedidas contas ao governo da senhora Merkel.

Em Agosto de 2008, o esquadrão "Scorpion" de forças especiais norte-americanas lançou uma chuva de rockets alegadamente sobre uma bolsa de talibãs na cidade de Helmand, acção em que teve o apoio de bombardeamentos aéreos. O resultado oficial foi a morte de 24 insurgentes. Ainda hoje, porém, não foi estabelecido o balanço total do número de civos mortos e feridos. Em Agosto de 2007, um esquadrão das forças de intervenção polacas lançou uma chuva de morteiros sobre uma festa de casamento na aldeia de Nangar Khel, alegadamente para vingar a explosão de um chamado IED, artefacto artesanal. Não está ainda feito o apuramento do número total de mortos e feridos, todos civis, nesta operação susceptível de ser considerada "crime de guerra". O esquadrão polaco regressou ao seu país e, por pressão das hierarquias militares, o julgamento entretanto efectuado não teve quaisquer consequências até ao momento.

Em 2 de Outubro de 2008, tropas francesas suspeitaram de um autocarro que se aproximava de um comboio da NATO e fizeram fogo. Era um autocarro escolar: oito crianças ficaram feridas. Dois meses depois, o esquadrão norte-americano "Red Currahee", do Kentucky, suspeitou também de um autocarro que considerou ameaçador para um comboio da NATO e varreu-o a rajada de metralhadora. Morreram quatro ocupantes e 11 ficaram feridos, todos civis porque se tratava de um autocarro de passageiros.

Os ficheiros "Blue and White" representam, segundo a interpretação do jornal britânico "The Guardian", "um catálogo dos massacres" de civis cometidos pelas tropas estrangeiras através do recurso à "escalada de força" contra "veículos ameçadores" em postos de controlo, junto a bases militares ou nas imediações de comboios da NATO. Também há registos de vítimas civi isoladas, como é o caso de um mecânico de automóveis que fazia um teste a uma viatura e "demorou a sair da estrada" ou de uma aldeã idosa que participava numa manifestação contra o modo como são tratados os civis na giuerra. A frequência de episódios deste tipo chegou a abrir uma crise entre o governo norte-americano e o presidente afegão por ele apoiado, Hamid Kharzai, quando este se insurgiu contra o elevado número de incidentes com civis, um facto que torna difícil sustentar a tese oficial segundo a qual as tropas estrangeiras estão no país para garantir a segurança das populações.

Responsáveis militares norte-americanos consideram, face à divulgação de documentos secretos feita pelo Wikileaks, que este site "tem sangue nas mãos", uma interpretação que, nota o "The Guardian", pretende inverter o sentido do massacre que está a ser realizado no Afeganistão. A polémica regista-se num dos momentos mais críticos da situação criada com a invasão iniciada em Outubro de 2001, alegadamente para derrubar os talibãs e prender ou liquidar Bin Laden. Na recente conferência internacional de doadores, o presidente afegão prometeu, com acordo das potências que tutelam o seu regime, que as forças policiais e militares do país assumirão o controlo de todo o território a partir de 2014. A declaração foi feita em Julho, o mês mais sangrento para as tropas invasoras em quase nove anos de operações e durante o qual foi batido o recorde de vítimas - que por sua vez fora estabelecido no mês imediatamente anterior. É difícil conjugar esta promessa com a realidade no terreno, explicada agora de maneira ainda bastante mais nítida pelos documentos divulgados através do Wikileaks.


Artigo publicado no portal do Bloco no Parlamento Europeu

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