domingo, 8 de agosto de 2010

“Elite Oculta”: Você sabe a quem interessa a pauta que lhe vendem?

31/1/2010, Janine R. Wedel, Huffington Post

Traduzido por Caia Fittipaldi


Na comunidade de menos de duas mil almas onde fui criada, os famosos seis graus de separação derretem. Em cidades muito pequenas você é obrigado a desempenhar vários papéis: cuidar dos filhos do vizinho, o qual é seu professor e amigo do seu pai, e que é casado com a professora da Escola Dominical. Há aí algum espaço para nepotismo e corrupção? Há. Mas, ao mesmo tempo, todos sabem o que todos estão fazendo, e as agendas e pautas ocultas são quase impossíveis. Em cidades muito pequenas, agendas, pautas, papéis sociais, relacionamentos e apadrinhamentos são bem visíveis.


Ao contrário, entre os operadores do poder, os “flexibilizadores” [1] que operam hoje no mundo – a elite oculta –, o público jamais consegue ver com clareza todas as agendas, pautas, papéis, relacionamentos e apadrinhamentos que os ligam.


Examinamos alguns desses “flexibilizadores” e vimos que mesmo quando são processados por fraudar o fisco, eles continuam dando jeito de garantir seu lugar à mesa, e sempre voltam. Onde antes havia poucos agentes de poder e as afiliações eram mais estáveis, a nova geração de atores – cujos muitos e sempre fluidos relacionamentos refletem a multiplicidades de empresas que vivem hoje muito próximas do Estado – atuam globalmente e são difíceis de rastrear.


Os papéis se sobrepõem e interconectam, podem criar comunidades vibrantes e fortes – e podem ajudar a explicar por que uma pequena comunidade pode ser ao mesmo tempo insular e altamente engajada no mundo. Essa estrutura admite e dá apoio a mobilizações, seja para organizar uma festa ou um movimento de ajuda comunitária. A comunidade onde nasci, que tem raízes na tradição Menonita de serviço social, organizou-se muito rapidamente para ajudar o Haiti. Em boa parte porque lá todos têm informação de primeira mão e há sólida rede de interdependência.


Em pequena escala, a interdependência de papéis e relacionamentos é benéfica. Mas se se aplica à elite oculta, o modelo cria riscos imediatos à democracia. Enquanto, numa pequena comunidade, há instalado um apparatus que impede que se constituam agendas ocultas e ajuda a discernir entre o que interessa aos muitos e o que não interessa – pode-se sempre conhecer e verificar a fonte da informação e os interesses de quem informa –, nada semelhante a isso existe na grande esfera pública, que acaba ocupada por uma elite oculta. (A elite oculpa depende, é claro, da troca de informação de primeira mão, mas esconde atentamente essa informação e a oferece já interpretada.) O grande público é deixado sem meios confiáveis para saber o que os ‘flexibilizadores’ estão interessados em obter com o que fazem – seja porque os papéis se sobrepõem, seja porque os interesses ocultam-se em tramas muito densas de interesses, seja porque jamais se conhecem os padrinhos reais de cada iniciativa. Sem acesso a essa informação básica, a opinião pública fica desarmada para construir opiniões adequadamente embasadas.


Em comunidades pequenas, quando um conhecido se aproxima de você numa reunião social, sob o pretexto de apresentar condolências pela morte de um ente querido e você sabe que o tal seu conhecido vive de vender seguros de vida, você tem meios para adivinhar facilmente a agenda dele e sua pauta de interesses e assuntos. Assim, num segundo, você pode decidir se agradece mais ou menos pessoalmente, ou, mesmo, se lhe dá as costas. Assim, sob sua pessoal responsabilidade, vc pode escolher se se deixa ou não manobrar, e até que ponto. Nada disso é assim, onde opere a elite oculta: ninguém jamais consegue saber como, quando e o quanto está sendo manipulado.


Considere-se, por exemplo, o ex-secretário de Segurança Nacional Michael Chertoff que, desde o Natal fala pelo rádio e televisão, sem parar. Não faz outra coisa além de defender o emprego de scanners de corpo inteiro, como remédio infalível contra todas as inseguranças e riscos e falhas de segurança nos vôos. Depois de ele muito falar, acaba-se descobrindo que o ex-secretário representa agora a única empresa fabricante de scanners já qualificada para vender equipamentos ao governo.


Antes de esse fato vir à tona, como o público poderia saber que estava sendo ativamente induzido a aceitar um ponto de vista (mercantil) interessado? O público não tinha nenhum meio para descobrir a manipulação, porque o público sequer sabia que lhe faltava uma informação básica crucial. E, mesmo depois de a informação crucial afinal se tornar pública, ainda assim o público sempre lembrará mais ‘as vantagens’ de usar-se aquela marca de scanner, do que dos interesses pessoais de Chertoff.


Ou o embaixador Peter Galbraith. Galbraith, veterano defensor da autonomia dos curdos, gastou muita sola de sapato indo e vindo entre o Curdistão Iraquiano e os EUA. Foi secretário-conselheiro para assuntos do Curdistão do governo Bush e ajudou os curdos a preparar a constituição do Iraque. Apresentado como “especialista”, publicou inúmeras análises e opiniões na New York Review of Books, no New York Times, no Washington Post e em muitos outros veículos, sempre defendendo a independência dos curdos e o direito dos curdos sobre o petróleo que abunda na terra deles. E todo o tempo – como só agora se sabe –, trabalhava a favor de seus negócios, que hoje alcançam os 100 milhões de dólares, nos quais negocia o mesmíssimo petróleo. Os parceiros não-comerciais de Galbraith no Iraque talvez não soubessem dos seus negócios. Como disse um ex-diplomata iraquiano e advogado: “A ideia de que uma empresa estrangeira de petróleo esteve na sala na qual se preparava a Constituição do Iraque deixa-me tonto... Todo o processo parece escondido numa nuvem de ilegitimidade."


Embora os flexibilizadores não sejam necessariamente aéticos ou antiéticos, a opinião pública é induzida a crer no que digam e escrevam, porque os toma por especialistas – de política exterior a segurança nacional, tanto quando de reforma da saúde pública, sistema financeiro e quanto aos melhores modos de aplicar dinheiro. A opinião pública tente a aceitá-los pelo valor de face: são o que dizem ser. Mais ou menos como acontece nas pequenas comunidades. Mas não há como saber que aqueles personagens não são só o que dizem ser e que, portanto, não são imparciais.


Menos ainda as pessoas podem fazer, para não tomar conhecimento das opiniões deles. É impossível não ouvi-los, não vê-los. Não há qualquer mecanismo em tempo real, ou próximo disso, no fluxo de informações que chega à opinião pública, que permita que as pessoas filtrem a informação que os flexibilizadores oferecem abundantemente. De fato, é praticamente impossível detectar todo o âmbito em que agem os flexibilizadores e o alcance de todos os seus atos e feitos.


Uma sociedade democrática procura a imprensa – pilar da transparência – para obter informações que ajude a julgar a ação e a fala dos flexibilizadores. O problema começa, porque pode interessar à própria imprensa – e quase sempre interessa aos veículos da imprensa – manter ocultadas todas, ou algumas, das filiações dos flexibilizadores. “Especialistas” como Chertoff e Galbraith estão constantemente nos jornais, rádios e televisões, sem que se informem à opinião pública todos, nem, que fosse, os principais papéis sociais, relacionamentos e apadrinhamentos ou associações daqueles “especialistas”. Domingo passado, um dos editores do New York Times Clark Hoyt denunciou os dois flexibilizadores citados acima, além de outros dois, por não revelarem atividades e papéis e atividades que comprometeriam a imparcialidade de seus discursos e declarações públicas. Disse que seria tarefa dos repórteres que os entrevistaram recolher esse tipo de informação.


Fato é que esse é remédio para paciente que já morreu. Quando essas ‘denúncias’ vêm à tona, o mal já está feito. A opinião pública já foi manipulada. Por exemplo, as revelações sobre Galbraith vieram tarde demais e não impediram qualquer efeito danoso que a duplicidade de papéis tenha tido ou ainda possa vir a ter. E ajudam a fortalecer a opinião de todos que, Iraquianos ou não, acreditem que os EUA e aliados invadiram o Oriente Médio por cobiça, pelo petróleo.


Para piorar ainda mais o quando, a certeza de que o público confia neles e nos veículos pelos quais distribuem informação interessada estimula as figuras públicas e todos os especialistas a dizer o que mais lhes interesse dizer, a cada momento. Como se desaparecesse a necessidade jornalística de confirmar o que dizem ‘as fontes’ (ou as “autoridades em Brasília” ou os “sociólogos uspeanos”, ou o ‘diretor-executivo da “Transparência Brasil”).


O exemplo que me ocorre a todo instante, nos últimos tempos, nos EUA, é o mantra “a economia está melhorando.” Não está. De cada seis norte-americanos que procuram emprego de período integral, só um encontra. No mundo em que vivemos, cercados de notícias 24 horas/dia, 7 dias/semana, já praticamente não há jornalismo investigativo. E dissipa-se a lembrança que o público tenha do currículo e das atividades das vozes que lhes falam pela televisão, porque é como se só o aqui e agora interessasse na sociedade da ‘credibilidade’ (se é crível, é fato).


Até que encontremos um meio que nos ofereça sistema que permita verificar a informação que a imprensa oferece, capaz de neutralizar o opinionismo dos flexibilizadores e das redes de flexibilização da opinião pública, esses agentes do poder terão cada vez mais influência, enquanto vai-se criando uma nova geração de flexibilizadores do já flexibilizado, cada vez mais influente frente a uma opinião pública cada vez mais incapaz de avaliar e julgar coisa alguma. Lenta e consistentemente, os flexibilizadores estão flexibilizando todos os marcos que a sociedade criou, ao longo da história e que visavam a garantir que a democracia significasse alguma coisa.


Nota de tradução


[1] “Ao contrário do que o nome parece significar, os “flexibilizadores” [ing. f lexians] – objeto do estimulante trabalho da antropóloga e especialista em políticas públicas Janine Wedel, Shadow Elite [Elite Oculta] – não são alienígenas saídos de algum episódio de Star Trek. São uma constelação de atores sociais, relativamente novos, especificamente terrenos, e que estão remodelando a paisagem da governança global. Emblema da nova era das “flexibilizações”, esses atores da elite constroem a própria influência e o próprio poder indo e vindo entre vários papeis sociais, a maioria dos quais, e suas interrelações, são mantidos ocultados da opinião pública” (Global Integrity Commons).


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Shadow Elite: Do You Know Whose Agenda You're Being Sold?