sexta-feira, 13 de agosto de 2010

DIÁRIO DA GUERRA AFEGÃ

Chico Villela

Um site e um livro fazem mais que dez mil discursos para expor sem retoques o fracasso da política de guerra no Afeganistão e da política de alianças para a ‘Guerra ao Terror’ capitaneada pelos EUA e seguida, sem voz nem opinião, pelos aliados da OTAN. O site é http://wikileaks.org. O livro , “Diplomacia Suja”, do ex-embaixador britânico no Uzbequistão Craig Murray, escocês beberrão, namorador e de coragem digna de monumento, será analisado em texto próximo.

Pinçado de discurso de campanha de BHObama: "Eu não quero apenas pôr fim à guerra; eu quero pôr fim à atitude que nos leva à guerra em primeiro lugar".

No dia 25 de julho passado, simultaneamente, os jornais The New York Times e o britânico Guardian e a revista alemã Der Spiegel dedicaram várias páginas ao tema que abala os governos aliados no momento. Fornecidos pelo coletivo de ativistas políticos conhecido pelo nome WikiLeaks, fundado em dezembro de 2006, os três meios expuseram suas leituras de cerca de 75 mil registros militares dos EUA e de países da OTAN na guerra do Afeganistão, nomeados de Diário da Guerra Afegã. Os arquivos haviam sido passados aos jornais e à revista tempos antes, com a condição de que analisassem e só iniciassem a divulgação de suas leituras no dia 25 de julho.

WikiLeaks reúne um restrito grupo de jornalistas, especialistas em segurança eletrônica e analistas, apoiados por cerca de 800 voluntários em todo o mundo, que se dedicam a revelar segredos principalmente de governos, serviços de Inteligência e grandes corporações. O intuito do grupo é trazer ao debate público temas de elevada gravidade que, por isso mesmo, quase nunca chegam às fontes de divulgação. Em entrevista à Der Spiegel online, Julian Assange, 39 anos, fundador e condutor do Wikileaks, sumariza: “Não é Wikileaks que decide revelar algo. É um ‘whistleblower’ ou um dissidente que decide revelar. Nosso trabalho é garantir que essas pessoas sejam protegidas, o público seja informado e o registro histórico não seja negado”.

Em 2009, Wikileaks recebeu o prêmio Mídia da Anistia Internacional pela revelação das mortes extra-judiciais de responsabilidade da polícia do Kenia. Antes dessa maciça distribuição de registros secretos, o coletivo WikiLeaks havia revelado um vídeo militar gravado em Baghdad que mostra dois soldados dos EUA num helicóptero matando cerca de uma dezena de civis numa praça. Dois deles eram repórter fotográfico e auxiliar de fotógrafo da agência Reuters. O fato foi comentado em blog desta NovaE. A abertura do texto destaca os objetivos do Wikileaks.

Do total de cerca de 91 mil registros, pouco mais de 15 mil foram separados para posterior análise mais aprofundada e divulgação. Os 75 mil registros abordam temas como IED (mecanismos explosivos improvisados, maior responsável por mortes de aliados); operações ofensivas; fogo inimigo; encontros com possíveis forças hostis; diálogos com velhos líderes tribais em aldeias; número de feridos, mortos e detidos, entre civis, soldados aliados, tropas afegãs e combatentes inimigos; seqüestros; informação de inteligência mais ampla e avisos explícitos de ameaças interceptadas via rádio; relatos locais da polícia e tropas afegãs; considerações sobre falta de equipamentos e suprimentos. O período coberto vai de 2004 ao fim de 2009.

Encontram-se também registros de Inteligência dos marines, de embaixadas dos EUA, relatos de corrupção do governo local e trabalhos de desenvolvimento no país. Todos os 75 mil registros podem ser encontrados catalogados neste endereço, Diário da Guerra Afegã, que apresenta também, em inglês, esclarecimentos necessários à sua plena compreensão e um mapa com as locações dos fatos registrados. Uma tradução para português pode ser vista nesta edição do site resistir.info.

Alguns aspectos destacados

BHObama - O presidente BHObama foi praticamente forçado a vir a público dizer algumas palavras sobre o maior vazamento de informações secretas da história militar dos EUA de uma guerra em andamento. Previsivelmente, afirmou que as revelações não são originais, e que nenhum fato novo surgiu dos registros. Curiosamente, faz o percurso contrário de alguns dos seus mais altos conselheiros, que alegam ser o vazamento uma ameaça aos soldados em campo e à segurança do país. Não é bem assim. Não há fatos novos para o presidente e altos conselheiros, o que os coloca, aliás, em situação incômoda perante tantos crimes e acobertamentos.

Mas há uma realidade absolutamente nova: o mundo inteiro pode ter acesso aos fatos sempre ocultos que agora podem ser vistos nos registros. Não existem ameaças, e há revelações sem conta, algumas de elevada gravidade. E há fatos que, mesmo conhecidos, como a morte de civis acima do que a grande mídia divulga, ganharam peso decisivo pela magnitude dos números e a manipulação de informações.

Mortes de civis - Analistas enxergam a morte indiscriminada de civis como a grande fonte de recrutamento do Taleban: a cada aldeia atingida, mais e mais jovens aderem à guerra. E ganham para tanto, o que, num país miserável, é dado de relevância.A mídia só divulga raramente. O site destaca as vítimas civis, “pequenas tragédias”que nunca merecem notícia pela mídia, mas que formam a maior parte das mortes e dos ferimentos e nutrem o crescente ressentimento da população contra os invasores.

A análise mostrou que há gradações de ênfases e verdades conforme variam os focos dos registros. A falsificação de dados começa em campo. “No relato de suas próprias atividades, as unidades euamericanas inclinam-se a classificar mortes de civis como morte de insurgentes, reduzir o número real de mortos ou apresentar desculpas para si mesmos.” Os relatos sobre outras unidades são mais verdadeiros, mas com raro criticismo. Já relatos sobre ações dos aliados tendem à franqueza e ao criticismo. E relatos sobre o Taleban e outros grupos de combatentes trazem detalhes e exposição de comportamentos condenáveis.

Nas palavras de Assange em entrevista à ativista Amy Goodman: “Então esse gênero de relato corrupto começa no campo e então é movido para cima através do Pentágono e do pessoal de relações com imprensa e é então colocado em uma forma politicamente digerível”. Assange reage com ironia à afirmação de Goodman de que o Pentágono empenha-se na identificação criminal das fontes: declara que, antes de preocupar-se com as fontes, o governo deveria ocupar-se em investigar os crimes de guerra relatados nos registros.

Segurança pessoal - Sobre sua segurança, Assange revelou que pessoas informadas como o celebrado repórter investigativo Seymour Hersh fizeram chegar a ele recomendações para cuidar-se. Um ex-diplomata australiano e jornalista especializado em segurança nacional alertou-o de que o governo dos EUA tentou articular-se com o pessoal de Inteligência australiano (Assange é cidadão do país) para vigilância e posterior detenção do pessoal do Wikileaks na Austrália. Segundo a fonte, o governo australiano rejeitou com ênfase a colaboração, por razões políticas.

Quanto à vigilância no Reino Unido, que é conhecida e permanente e foca milhares de pessoas, Assange não teme conseqüências, pelas extensas repercussões que teria qualquer ação na mídia e nos meios políticos e de governo locais. E, claro, não pretende ir aos EUA.

Esquadrões da morte - Outra revelação de peso foi a confirmação do papel de grupos secretos, esquadrões da morte pesadamente armados formados por militares ou agentes das CIA, nas mortes de civis. A ação desses grupos tem origem no gabinete do ex-vice de Bush, Dick Cheney, que montou um grupo ligado ao Pentágono (as suas relações com a CIA não eram boas) dedicado a assassinatos de alvos escolhidos mundo afora, e entregou seu comando ao general Stanley McChrystal, anterior comandante das forças invasoras no Afeganistão. O tema já foi tratado em alguns artigos desta NovaE.

O que se torna transparente nos registros é a falta de informação segura e de critérios para os agentes, que se deslocam pelo país, em geral em ações noturnas, para assassinar líderes insurgentes. Em centenas de casos, mulheres e crianças e outros inocentes foram vítimas desses assassinos. Como anota o NYT, a CIA pagou durante o período as despesas da agência afegã de Inteligência, e usa seus serviços como se fosse os de uma subsidiária. Um erro reconhecido dos invasores foi instituir pagamento em espécie para denúncias de presença e operações inimigas. Na impossibilidade ou lentidão de verificação sobre a veracidade da denúncia, a máquina de matar move-se mais rápido.

Artigo do analista Alex Lantier no World Socialist Web Site descreve dois desses momentos colhidos nos registros. Em 11 de junho de 2007, na busca por um líder taleban próximo a Jalalabad, no leste afegão, um comando da Task Force 373 foi surpreendido pelas luzes de um holofote. Um helicóptero de combate chamado pelo comando à cena eliminou a ameaça e revelou a surpresa: sete policiais afegãos foram mortos e quatro, feridos, no que se conhece como “fogo amigo”.

Em outro evento comando da Task Force 373 aproximou-se da aldeia de Nangar Khel, província leste de Paktika, onde presumivelmente se encontrava abrigado o líder Abu Laith al-Libi. O plano previa o disparo de seis mísseis e posterior ataque por terra. Além de não encontrar o líder taleban, verificou-se que seis adultos locais e oito crianças de uma madrassa (escola muçulmana) foram mortos. Os adultos foram descritos como insurgentes do Taleban.

(Dia 5 de agosto o governo afegão liberou o resultado de um inquérito sobre um raid aéreo das forças da Otan durante uma batalha na região de Sangin, província de Helmand, segundo eles, com 'insurgentes'. Uma casa foi bombardeada. Dentro da casa, morreram 39 mulheres e crianças, que haviam se abrigado ali para fugir do fogo cruzado. Nenhum adulto, nenhum insurgente. A Otan havia declarado que haviam morrido 6 pessoas, a maioria, militantes.)

A voz de Julian Assange e a origem dos registros

Julian Assange concedeu recentemente entrevistas após o início da divulgação pelos três meios citados. Um dos aclaramentos de Assange é que o WikiLeaks, ao contrário do que se pensa e divulga, não é um site “colaborativo”, como a Wikipedia. Ninguém consegue postar revelações e denúncias, apenas encaminhá-las ao grupo de direção. O site só publica material inédito. Todas as informações são criteriosamente checadas. Não são aceitas, por exemplo, revelações de ordem pessoal, apenas políticas, econômicas, militares, de Inteligência, etc.

O Guardian estampou artigo de Nick Davies, um dia após o início das publicações pelo jornal, reproduzido pelo site ativista Countercurrents, com a história da origem dos registros da guerra afegã. Para Davies, o receio de Washington é que WikiLeaks detenha material mais sensível ainda, algo como dezenas de milhares de mensagens de embaixadas sobre acordos de armamentos, conversações de comércio, reuniões secretas e opiniões sem censura de governos. O Wikileaks nega a afirmação, atribuída a Manning pela revista Wired, de que tenha recebido “260 mil despachos de embaixadas” euamericanas de todo o mundo.

Assange relata que foi instado pela área de investigações criminais do Pentágono a auxiliar a interromper a corrente de informações, mas recusou-se. Nos dois últimos meses, WikiLeaks recebeu muita informação, “material de alta qualidade”, de fontes militares. Amparado por lei sueca (os provedores alojam-se em países que resguardam o sigilo das fontes, como Suécia e Noruega), Wikileaks jamais revela as suas fontes, e todo material encaminhado é cuidadosamente analisado para que eventuais pistas sobre fontes sejam eliminadas.

Davies relata que o Pentágono agiu devagar. Segundo o que se divulga e que a revista Wired publicou, em novembro passado, alguém a trabalho em uma unidade de alta segurança numa base militar do Iraque iniciou há meses a cópia de materiais secretos. Em 18 de fevereiro, Wikileaks publicou documento classificado altamente comprometedor da embaixada dos EUA em Reikjavik, Islândia. Alguns colaboradores de WikiLeaks no país passaram a informar sua impressão de estarem sendo seguidos.

Bradley Manning - Em maio, um hacker californiano, Adrian Lamo, amigo do editor da revista Wired, foi contatado por chat por alguém com nome Bradass87, que se abriu de imediato: “olá... tudo bem? ... sou um analista de inteligência do exército, alojado em baghdad... se você tivesse acesso sem precedentes a redes classificadas, 14 horas por dia, 7 dias por semana por 8 meses, o que você faria?” Davies (Assange) relata que, por uma semana, Bradass87 abriu seu coração com Lamo. Tinha acesso a duas redes secretas: Secret Internet Protocol Router Network, SIPRNET, que transmite informações diplomáticas e militares classificadas como “secretas”, e a Joint Worldwide Intelligence Communications System, que usa um sistema de segurança diferente para transmitir material classificado como “ultra secreto”.

Bradass87 declarava que via coisas terríveis, inacreditáveis, a versão não oficial de fatos e crises, e que aquilo precisava cair no domínio público. Bradass87 indicou a Lamo que “alguém conhecido intimamente”(logo após, contou que ele mesmo fazia o serviço) estava baixando, comprimindo e criptografando o material e enviando a alguém chamado Julian Assange. Em 23 de maio, Lamo (anteriormente condenado por invasão do site do NYT) contatou autoridades militares nos EUA; dia 25, encontrou-se com oficiais do Pentágono numa lanchonete e forneceu as pistas de Bradass87. No dia seguinte, 26, um jovem de 22 anos, Bradley Manning, analista de Inteligência numa base próxima a Baghdad, foi preso e enviado a uma prisão militar no Kwait.

Solidariedade - Manning acha-se hoje preso numa base nos EUA, em Virginia, e deverá enfrentar corte marcial. Pesam contra ele oito acusações que podem somar 52 anos de prisão. Seu nome já foi incluído em vários sites de ativistas militares (veja um exemplo de site) entre os perseguidos que necessitam defesa perante acusações como traição, deserção etc. Um trecho da carta enviada aos assinantes do site afirma: “Agora, o analista de Inteligência Bradley Manning está na berlinda e pode passar décadas na prisão por liberar um vídeo de um massacre em Baghdad”. A corrente se amplia, como se vê nesse movimento do site Courage to Resist.

Outra iniciativa é o blog criado pelo radialista Mike Gogulski, de Los Angeles, dedicado à defesa de Bradley Manning. Notícia da página do blog informa sobre um show promovido pela rádio KPFK com apoio de Scott Horton, titular do site Antiwar.com. O programa anunciou entrevistas com Daniel Ellsberg e Julian Assange. O site de Ellberg traz entrevista sobre os registros da Wikileaks.

O Pentágono ainda não sabe se há mais envolvidos, e quantos seriam, e o único acusado por enquanto é Manning. O analista do Pentágono que revelou nos anos 1970 os famosos “Papéis do Pentágono”, Daniel Ellsberg, anunciou que Assange corria risco físico, e que as agências de Inteligência euamericanas fariam tudo para tornar o caso exemplar. Por cautela, Assange cancelou uma viagem programada a Las Vegas e permaneceu na Europa.

Acerto - A estratégia de oferecer os dados aos dois jornais e à revista, com data marcada para o início do noticiário, mostrou-se acertada e segura, e garantiu divulgação mundial aos registros da guerra afegã. Agora, Assange confirmou ao Guardian que está de posse de milhões de registros de operações dos EUA pelo mundo, e que em breve irá publicar. Alega possuir informações de todos os países acima de 1 milhão de habitantes. Fica evidente que a estratégia da Wikileaks é condicionada e tornada possível pela existência e abrangência democrática da internet.

Assange manifesta receio de ver o site crescer e não poder honrar os materiais que, pensa, vão fluir cada vez mais ao WikiLeaks. Conta que, após revelar a morte de 51 civis num incidente no Afeganistão, houve aumento substancial de ofertas. Nas suas palavras, “a coragem é contagiosa”. E não vê diferenças entre os fatos do período dos registros e a situação atual sob BHObama: “As forças armadas dos EUA são um barco grande demais para fazer meia-volta”.

Mistério – Uma semana após a liberação do Diário da Guerra Afegã, o site do WikiLeaks passou a exibir um “arquivo de segurança”, de 1,4 gigabytes. Muitas especulações vêm sendo levantadas sobre o fato. Alguns imaginam que seja algo que possa ser aberto mediante senha em caso de ocorrer algo a Assange ou seus colaboradores. Nesse caso, constituiria uma medida preventiva, e a senha seria fornecida por alguém já designado. Outros imaginam que sejam os 15 mil registros que ainda não foram divulgados, ou mesmo os tais 260 mil memorandos e despachos de embaixadas citados como de Manning pela revista Wired e negados pelo WikiLeaks.

Paquistão e Inter-Services Intelligence – ISI

Uma das revelações, ou reforço de conhecimento, mais explosiva dos registros refere-se ao papel do ISI, agência de Inteligência paquistanesa, perante as forças combatentes no Afeganistão, em especial o Taleban. Durante a invasão soviética, entre 1980 e 1989, os combatentes muçulmanos foram armados e treinados por agentes do ISI, que intermediava verbas, armamento e orientações da CIA, e não raro os próprios agentes da CIA assumiam a frente dos eventos. O ISI fortaleceu-se sob as benesses da CIA e a colaboração com o Taleban. Afastado o ditador Pervez Musharraf, e após a morte de Benazir Bhuto em atentado, seu viúvo Azif Ali Zardari assumiu a Presidência. Havia sido ministro voltado para indústrias e empresas, em governo anterior de Bhuto, ocasião em que ficou conhecido pela vasta corrupção.

O Paquistão é uma sociedade dominada por poucas famílias com fortunas, também grandes proprietárias de terras, que residem nos EUA, em Dubai e no Reino Unido. Recente pesquisa mostrou que 6 em cada 10 paquistaneses consideram-se inimigos dos EUA e querem os invasores fora do Afeganistão. Boa parte do ISI é formada por profissionais, e são esses profissionais que emergem dos registros como apoiadores, orientadores e fornecedores de armamento para o Taleban. Criado em 1947 pelos britânicos, como solução para alojar a parcela muçulmana da região, o Paquistão tem fronteira artificial com o Afeganistão, e a maior parte dessa fronteira, a Linha Durand, montanhosa e inóspita, é habitada dos dois lados pelos mais de 20 milhões da milenar etnia pashtun, base social do Taleban.

Ajuda - A colaboração do ISI com o Taleban coloca problemas de difícil solução para o governo dos EUA. Bilhões fluem todo ano para os cofres do governo, e sem dúvida para bolsos também, em nome da “ajuda” dos EUA ao país, e seus atuais governantes e chefes militares são beneficiários dessas verbas. O Paquistão detém armas nucleares, e é um assunto delicado manter a fidelidade dos seus mandantes aos combalidos princípios da ‘Guerra ao Terror’, cada vez de mais difícil defesa.

A citada ajuda é sempre basicamente militar. Em entrevista há uns meses ao londrino The Times, o ex-ditador Musharraf declarou que boa parte das verbas para ações anti-terrorismo sempre foi empregada em compra e desenvolvimento de armamento. O analista Gulam Mitha sintetiza o significado da ajuda para a população: “a) inflação crescente; b) carência de alimentos; c) aumento de ataques terroristas; d) instabilidade em ascensão; e) pouca energia e combustíveis; f) mais pretextos de assassinatos de civis pelos drones”. O jornal paquistanês Dawn informa que a proporção que reflete a ineficiência desses bombardeios por drones é avassaladora: para cada 1 insurgente morto, morrem 140 civis. Como no Afeganistão, isso alimenta a oposição e o ódio da população aos EUA.

Amigos e pressões - Entre 17 e 24 de julho ocorreu na região intensa movimentação de autoridades aliadas. Mitha cita: enviado especial Richard Holbrooke, conhecido como “Bulldozer”, dia 17, um dia após os primeiros-ministros da Índia e do Paquistão se encontrarem / Hillary Clinton chegou dia 18, e ambos se encontraram com o presidente Zardari, o primeiro-ministro Gilani, o ministro do Exterior Qureshi e o chefe militar Kayani / O secretário da OTAN, general Anders Rasmussen, chegou dia 21 / O comandante geral euamericano Mike Mullen veio dia 24, após dois dias de visita à Índia. A movimentação pode ter relação com os rumores de ataques ao Irã e a “um país árabe”, talvez a Síria. Pouco antes, o primeiro-ministro britânico David Cameron havia cumprido visita oficial à Índia.

O combate das forças armadas paquistanesas aos insurgentes Taleban que se alojam do lado paquistanês da fronteira tem sido inconvincente aos olhos de planejadores da guerra euamericanos e aliados, e o fato de o ISI agir contra as diretrizes do governo-cliente dos EUA gera graves dúvidas sobre o desenrolar dos acontecimentos. As revelações dos registros sem dúvida reforçam a posição dos falcões que desejam ampliar a guerra sem fronteiras, incluindo até mesmo o Irã. Mas, ao mesmo tempo, abalam e relativizam os planos e jogam sombras densas sobre as certezas de quem é “amigo” e quem é “inimigo”, dado que nem mesmo no Afeganistão ocupado é claro.

A rede de comunicação árabe Al JAzeera analisou a questão em artigo recente. Apoiada na análise do NYT, Al Jazeera afirma que os documentos mostram que o Paquistão (leia-se áreas do ISI) “estimula representantes de seu serviço de Inteligência a contato direto com o Taleban em sessões estratégicas secretas para organizar redes de grupos militantes para lutar contra os soldados americanos no Afeganistão, e até mesmo empreender complôs para assassinar líderes afegãos”. O embaixador paquistanês nos EUA reagiu como se esperava: “Estados Unidos, Afeganistão e Paquistão são parceiros estratégicos e acham-se juntos dedicados a derrotar Al Qaeda e seus aliados Taleban militar e politicamente”.

A revelação de que o Taleban tem derrubado aviões e helicópteros com mísseis terra-ar surpreendeu os meios leigos que acompanham a guerra e levantou interrogações sobre a procedência do armamento, pela qual são acusados o Paquistão-ISI e o Irã, talvez para não se perder esta chance de demonizar o Irã mais uma vez. O ISI também é associado nos registros à formação e treinamento, a partir de 2006, da rede de combatentes suicidas que se explodem para eliminar tropas e outros alvos. O ex-chefe do ISI entre 1987 e 1989, general da reserva Hamid Gul, periodicamente é acusado, como neste momento, de manter laços com o Taleban.

Complicantes - Outros fatores complicantes são, além da citada presença de armas nucleares em mãos militares, o uso do território paquistanês como forte pólo de apoio logístico para abastecimento das tropas no Afeganistão e os citados bombardeios de partes do território paquistanês com aviões sem pilotos (drones), para "desalojar fortalezas da Al Qaeda e do Taleban". No panorama desvendado pelos registros, as resistências no governo e no país podem vir a afetar o desempenho das tropas aliadas nos combates. Morrem sempre mais civis inocentes que combatentes em qualquer bombardeio, principalmente nesses bombardeios pretensamente “cirúrgicos”, em todo o mundo.

Atores - Mas acima dos complicantes paira a situação estratégica do Paquistão e das forças apoiadas e as opostas ao seu papel regional. As facções afegãs armadas dos wardruglords Gulbuddin Kekmatyar e Jalaluddin Haqqani recebem apoio paquistanês, mas as forças da Aliança do Norte, basicamente compostas por tadjiques e uzbeques, que perfilam com o governo de Karzai e os aliados, são apoiadas pela Índia, adversária do Paquistão, com o qual já entrou em guerra três vezes desde 1947, e gozam da simpatia da Rússia. O imbroglio completa-se com o fato de o maior aliado do Paquistão ser a China. Um ataque às forças paquistanesas arrastaria toda a região para uma perigosa e incerta situação de confronto generalizado.

Para o analista indiano Aurobinda Mahapatra, em artigo no site russo Strategic Culture Foundation, pode ser que o recado principal das revelações dos registros seja indicar a necessidade inevitável de ações conjuntas regionais, acima da ação isolada dos EUA, para que a situação possa ter possibilidade de desenlace. Mahapatra cita também a essencial participação de Rússia, Índia e China numa aproximação multilateral para solucionar a complexa equação chamada Afeganistão.

Choques - Ao tratar do tema num dos artigos de lançamento mundial dos registros do dia 25 de julho, com a manchete “Paquistão ajuda insurgentes no Afeganistão, afirmam registros”, o NYT anota: “Os registros sugerem, no entanto, que os militares paquistaneses têm agido duplamente como aliados e inimigos, já que sua agência de espionagem age como o que oficiais americanos há tempos suspeitam ser um jogo duplo – concordando com certas demandas para cooperação enquanto se esforçam para exercer influência no Afeganistão por meio das mesmas redes de insurgentes que os americanos tentam eliminar”.

Na semana passada, agências noticiaram que o chefe do ISI, general Ahmed Shujaa Pasha, cancelou visita que faria a Londres acompanhado de experts seniores para discutir cooperação e segurança. A medida decorreu de declarações do primeiro-ministro britânico, David Cameron, em visita a Bangalore, Índia, de que o Paquistão exporta terroristas e faz “jogo duplo”. A declaração enfureceu os meios militares e de governo paquistaneses, não tanto pelo seu teor, sem novidade, mas pelo fato de ter sido feita durante visita oficial à arquiinimiga Índia. As acusações vêm sendo estendidas também aos agentes espiões do Afeganistão, já que há registros com informações de que alguns deles também colaboram com o Taleban. Ocorrem também deserções de tropas afegãs treinadas e armadas pelos invasores, com freqüência acompanhadas de armamento pesado a até mesmo veículos.

O atual comandante das forças armadas paquistanesas, autoridade suprema sobre as ações de combate à Al Qaeda e ao Taleban e homem forte do regime, general Parvez Ashfaq Kayani, dirigiu o ISI entre 2004 e 2007, período ao qual se referem muitos dos registros de cumplicidade da organização com o Taleban. Tudo indica que atualmente há satisfação da parte dos EUA com as medidas de “depuração de colaboradores do Taleban” dos quadros do ISI pelo general, o que confirma, aliás, a participação de áreas do ISI contra os aliados.

A face real da guerra

O que se destaca das análises paralelas e das leituras empreendidas por especialistas, jornalistas e estudiosos é uma seqüência de eventos de inexcedível violência e brutalidade repleta dos classificados ‘crimes de guerra’, com erros elementares de estratégia e operação, e com repetição de velhos comportamentos como o assassinato indiscriminado de civis, dado que já havia contribuído enfaticamente para afundar as forças armadas euamericanas no pesadelo do Vietnã. O que se situa no foco central não é mais a guerra apenas, é todo o sistema organizado que há décadas vem criando situações similares e movimentando sua economia em torno da guerra e seus desdobramentos.

Discursos - Uma constatação fundamental domina as análises: após a mais longa guerra externa da história dos EUA, que já acumula 9 anos, o inimigo nunca foi tão forte, nem mesmo quando enfrentou os invasores em 2001 e foi deposto do governo. Nesse cenário, falar em “vencer” a guerra é mero discurso para arrancar mais recursos do Congresso. Na última votação, e de modo surpreendente, os republicanos, menos 12, aprovaram mais algumas dezenas de bilhões de dólares para as tropas, e mais de uma centena de democratas, do partido do presidente, votaram contra.

A aparente contradição sinaliza que os democratas acham-se apreensivos com as derrotas que têm sofrido em eleições parciais e de olho nas próximas eleições de 2012, ocasião em que, espera-se, BHObama pleiteará reeleição. Se não se pode vencer, resta sair, e aí reside o dilema avassalador: sair como? O Great Game (Grande Jogo) que há séculos desenrola-se em torno da Ásia Central e adjacências não admite lances desse gênero.

Corrupção - Outra face é a da oceânica corrupção, campo no qual os contratados particulares euamericanos e aliados para trabalhos de toda ordem, civis e militares, e fornecedores de quase todos os insumos usados pelas tropas competem com o inacreditavelmente corrupto governo do fantoche Hamid Karzai. O próprio vazamento de documentos sensíveis e de registros parece ser tendência inevitável, já que a atividade de Inteligência do governo e das forças armadas euamericanas vem sendo apoiada, segundo pesquisas do jornal Washington Post, por 854.000 contratados com acesso a informações de segurança. O preço de cada litro de combustível, trazido por terra e ar, colocado em campo no Afeganistão, somadas todas as despesas das fontes ao destino, anda pela casa dos 400 dólares. O custo da guerra na região já ultrapassou 1 trilhão de dólares (hoje, US$ 1,022,919,408,133).

Drogas - Após cair a quase zero durante o odioso regime do Taleban, a produção de ópio voltou com força total após a invasão em 2001. Hoje o Afeganistão responde novamente por mais de 90% da produção mundial. Os senhores da guerra, warlords, que são os mesmos senhores das drogas, druglords, deixam crescentemente de exportar ópio e, agregando valor ao seu produto, vêm refinando no país mesmo e exportando heroína. Gozam de facilidades imensas para importar os produtos químicos usados no processo.

Um dos donos do tráfico é Ahmed Karzai, irmão do presidente, que governa uma província e colabora com a CIA. São estimados cerca de 1 milhão de consumidores apenas no Afeganistão, e 15 milhões em todo o mundo, dos quais morrem uns 100 mil todo ano. Os invasores, como precisam de muitos dos seus serviços e colaboração, além de seus exércitos bem armados, fazem vista grossa. Ultimamente, vem aumentando de forma veloz a produção de haxixe, conforme depoimento de Antonio Maria Costa, chefe do serviço da ONU dedicado ao combate a drogas e crime.

A heroína afegã escoa para Rússia e Irã e para a Europa, onde o narco-Estado balcânico de Kosovo é o maior distribuidor mundial da droga. Kosovo foi criado pelos EUA-OTAN, e desde então é dirigido pelos chefes do tráfico. O tema, considerado pela Rússia e outros países ameaça mundial, nunca foi sequer discutido no Conselho de Segurança da ONU. Ao mesmo tempo, cerca de 8% do comércio mundial, ou 600 bilhões de dólares, envolvem drogas. Segundo o chefe russo do combate ao tráfico de drogas, Viktor Ivanov: “A declaração antidrogas da ONU não tem efeito. A OTAN nunca agiu para combater o tráfico afegão de droga e não parece interessada em fazer algo a respeito”.

Divergências - Um dos aspectos que se destacam nos registros e nas análises é a constatação da ausência de diretrizes firmes e políticas sólidas. O ex-analista da CIA Ray McGovern, em artigo recente, descreve as opiniões do ex-embaixador no Afeganistão, general da reserva Karl Eikenberry, sobre o pedido de mais tropas pelo então comandante local, general Stanley McChrystal.

Eikenberry anota em despachos enviados à Casa Branca, que fazem parte dos registros revelados: “Mais tropas não vão pôr fim à insurgência enquanto os santuários paquistaneses continuarem – e o Paquistão enxerga seus interesses estratégicos mais bem servidos com um vizinho fraco”. E ainda: “[...] nós nos tornaremos mais profundamente envolvidos aqui sem meios de escaparmos”. Ao mesmo tempo, escrevia: “Não é um parceiro estratégico adequado”, referindo-se ao presidente Karzai. Veja aqui os dois originais dos memorandos de Eikenberry.

Logo após, o Der Spiegel publicou, em novembro de 2009, uma entrevista com o conselheiro de Segurança Nacional do governo BHObama, general da reserva da Marinha James Jones. À pergunta sobre o pedido de mais tropas de McChrystal, Jones respondeu: “Generais sempre pedem mais tropas; eu penso que não vamos resolver o problema com mais tropas apenas. Você pode colocar tropas, e você poderia ter 200 mil tropas lá, e o Afeganistão irá deglutir (swallow) eles, como tem feito no passado”. BHObama acabou concedendo mais 30 mil tropas.

Números - O objetivo de um comando de tropas que sai a campo hoje no Afeganistão não é mais ganhar a guerra: é não perder e, ao mesmo tempo, tentar realizar o discurso de “proteger os civis”, que morrem às pencas pelas suas próprias mãos. Apenas na semana passada, 50 civis foram mortos de uma vez num ataque da OTAN. Morrem também pelas mãos do governo, que abafa com massacres manifestações de protesto e resistência popular. Há 237 registros de manifestações populares contrárias aos invasores e ao governo, muitas delas reprimidas e com dezenas, às vezes centenas, de mortos.

Firma-se entre todos os níveis das tropas a certeza de que a guerra afegã não pode ser ganha, inda mais num país que tem longa tradição de derrotar todos os seus invasores desde Alexandre, o Grande, três séculos antes de Cristo, e cujos povos se enraízam em seus territórios. Isso pode ser lido com clareza nos próprios registros: são 13.734 de “ação amiga” (EUA-OTAN), contra 27.078 de “ação inimiga” e 23.082 de “eventos com explosivos”, principais responsáveis pelas mortes de tropas. Salta aos olhos a mentira oficial de atribuir a maior parte dessas dezenas de milhares de ações à minúscula Al Qaeda.

Nem mesmo unidade existe entre os aliados da OTAN e os EUA sobre os objetivos comuns. Um ex-comandante das forças britânicas retirou-se do comando no Afeganistão disparando severas críticas contra o governo britânico e o então primeiro-ministro Tony Blair. Recentemente, o presidente alemão foi forçado a renunciar por declarações feitas durante visita ao Afeganistão. O Atlantic Council, site ligado à OTAN, publicou dia 7 de julho declarações polêmicas do general francês Vincent Desportes sobre as operações afegãs. A repórter do jornal Le Monde, Desportes declarou que a situação da guerra “nunca havia sido pior”. Afirmou: “É uma guerra americana”. “Os aliados não têm voz na estratégia.” Desportes serápunido pelas declarações.

Para quê? - Em recente ensaio, em que analisa as guerras hoje e seus impasses, o professor de História da Universidade de Boston e militar da reserva Andrew Bacevich lembra pergunta famosa da ex-secretária de Estado Madeleine Albright sobre a inutilidade do arsenal nuclear, gigantesco, que nunca poderia ser usado. E apresenta a pergunta: de que adianta usar constantemente nossos soberbos recursos militares se isso hoje não funciona mais?

E complementa: A recusa de Washington em encarar essa questão fornece uma medida da corrupção e desonestidade que permeia nossos políticos.

extraído do sítio NovaE